terça-feira, 23 de junho de 2020

UMA HISTÓRIA DE AMOR, UMA HISTÓRIA DE FÉ. PARTE 2



A JOVEM MARI CONTINUA SUA NARRATIVA

Depois de convertida

"Fui falar com o sacerdote. Chamava-se Mikelis Krumpans. Era letão, e, naqueles momentos, o único sacerdote católico que havia no país. Tinha uma testa grande e inteligente, um olhar agudo e compreensivo, o cabelo grisalho e um aspecto tão vigoroso como sua alma. Era pároco de Tallin desde 1952 e atuava com uma prudência extraordinária, conforme às circunstâncias.
Media cada palavra, sem jamais fazer alusão a questões políticas. Recebeu-me de forma seca e fria. Era lógico: que uma secretária das Juventudes Comunistas dissesse que queria ser católica tinha toda a pinta de ser uma cilada.
Durante esses anos, a catedral só era aberta aos domingos e nos dias de semana se utilizava uma capela. Salvo a Missa, tudo estava proibido: dar catequese, publicar textos de conteúdo católico, preparar as crianças para a Primeira Comunhão... Os edifícios religiosos estavam confiscados. Era uma Igreja – mais tarde aprendi o significado desta expressão – de catacumbas.
Comecei a frequentar aquela capela, como um caçador furtivo, temerosa sempre de que alguém me visse. Aqueles momentos na capela me produziam uma alegria interior imensa, incontrolável, que dissimulava quando chegava em casa ou passeava com Teet, para ninguém descobrir o meu segredo. Tinha medo de que os meus pais soubessem e me proibissem de voltar, ou que Teet estranhasse e acabássemos nos distanciando, porque nenhum jovem estônio – pensava eu – estaria disposto a casar-se com uma católica. Por fim o pároco se convenceu da sinceridade das minhas intenções. E alegrou-se profundamente, porque um de seus grandes desejos era chegar aos jovens estônios, o futuro da Igreja. Tinha rezado por isso desde que chegou à Estônia em 1952 e, talvez por isso, não se surpreendeu demais quando lhe falei de minha conversão repentina: esperava-me fazia vinte e cinco anos.
Estudei uns folhetos sobre a fé católica e me batizei em 21 de março de 1977, três meses depois daquela Missa de Natal. Naquele mesmo dia recebi a Confirmação e a Sagrada Comunhão. Minha madrinha foi Elisabet Ambrozunas, uma dona de casa que era uma verdadeira coluna da Igreja. Sorridente, de pele pálida e cabelo recolhido sob uma boina de lã branca, Elisabet cuidava do padre Mikelis – que vivia em condições precárias –, lhe fazia a comida, dava catequese às escondidas, cantava no coro, ocupava-se da limpeza da catedral…
CONTANDO COMIGO, ÉRAMOS UNS SEIS CATÓLICOS ESTÔNIOS EM TODO O PAÍS.
A cerimônia foi privada e o mais discreta possível. Algum tempo depois descobri que, contando comigo, éramos uns seis católicos estônios em todo o país.
Por temor de possíveis denúncias, o padre Mikelis não me anotou no registro oficial, mas num pequeno caderninho que não sei se foi conservado: me encantaria vê-lo. E a partir de então comecei a ir todas as manhãs à Missa das oito, à qual somente iam cinco ou seis senhoras muito mais velhas, ou pelo menos era a impressão que eu tinha. No domingo se celebrava a Missa na Catedral e ficava cheia; mas salvo algum estônio, como Lembit Peterson, a maioria eram poloneses. Por isso a chamavam de “a igreja dos poloneses”.
O Regime permitia que se celebrasse essa Missa para dar certa aparência de liberdade religiosa, embora sempre houvesse um espião do governo vigiando. Em se tratando de um jovem, além de negar-lhe qualquer possibilidade de viajar ao estrangeiro e de dificultar-lhe a carreira profissional, a partir desse momento seria controlado estreitamente e toda sua família ficava estigmatizada, por ser “a família de um crente”: quer dizer, um mau comunista, “desafeto ao Regime”.
Por essa razão ia aos domingos com bastante antecedência e, seguindo os conselhos do padre Mikelis, assistia à Missa com o coro, num lugar que não se vê da nave do templo. Comungava sozinha, uma vez terminada a Missa, e não mantinha nenhum tipo de contato com o resto dos católicos. Porém era quase impossível manter em casa um costume regular sem que os seus percebessem. Uma manhã, quando saía de casa debaixo de uma chuva torrencial, minha mãe me perguntou:
- Mas, Mari, aonde vai a estas horas, com esse tempo?
- Ao conservatório – respondi, precipitadamente – Ensaiar.
- Mas hoje está fechado... E você sabe!
Começou a fazer-me perguntas. E por fim me disse, olhando-me nos olhos:
- Você não está indo à igreja dos poloneses, né?
Estava farta de levar uma vida dupla. A dissimulação não combina com meu caráter. Afirmei com a cabeça.
- À igreja? – reagiu, entre confundida e irritada –. E nem sequer à luterana, mas à dos poloneses, onde rezam em latim! Naquele tempo, a Missa era em latim e a homilia em polonês. O pároco tinha me dado uma tradução da Missa em estônio, mas das homilias não entendia nada.
- Sim, em latim! – disse.
Ficamos em silêncio e não voltamos a falar daquilo.
Algum tempo depois
Em meados de outubro de 1978 pude ir ao festival de Música de Varsóvia, como membro do Konsomol, embora logicamente dentro de um grupo organizado. Paulo VI tinha falecido no mês de agosto anterior e os cardeais – disse-me o padre Mikelis, porque a imprensa oficial não informava desses acontecimentos – tinham se reunido em Roma para eleger um novo Papa.
Surpreendeu-me ver tantos jovens nas igrejas de Varsóvia: até então, os católicos que tinha conhecido eram bem mais velhos e em sua maioria idosos. Aquilo me produziu um forte impacto e uma grande alegria.
Apesar de ter tentado mais vezes, somente pude “me perder” do grupo em duas ocasiões para ir à Missa. Durante a cerimônia estava inquieta, com a suspeita de que alguém tivesse me seguido. A piedade das pessoas me emocionava: havia famílias inteiras, jovens, crianças... Algo que não tinha visto nunca.
O padre Mikelis tinha me dado o endereço de uns amigos poloneses que tinha conhecido na Estônia. Moravam em Zdúnska Wola, o povoado natal de Maximiliano Kolbe, e consegui que me deixassem ir sozinha visitá-los. Ao ver-me me disseram: “Como o padre Mikelis não pode vir, vamos te tratar como trataríamos a ele”. E tiveram mil atenções para comigo: mostraram-me a cidadezinha, levaram-me ao convento dos franciscanos e me contaram a vida de Kolbe, cuja história desconhecia por completo.
E precisamente durante aqueles dias na Polônia, nos quais, graças aos amigos do padre Mikelis, estava descobrindo a universalidade do catolicismo, juntamente com o heroísmo de tantos mártires, deram uma notícia surpreendente: tinham escolhido um novo Papa. E era...polonês! O Cardeal de Cracóvia, Karol Wojtyla!
SABÍAMOS QUE PELA PRIMEIRA VEZ SE OUVIRIA A VOZ DE UMA PESSOA QUE TINHA PASSADO GRANDE PARTE DE SUA VIDA SOB O PODER DA URSS.
É difícil imaginar o que supôs aquela eleição para os poloneses e para os católicos que vivíamos nos países detrás da “cortina de ferro”, como se dizia no Ocidente. Sabíamos que pela primeira vez se ouviria no mundo livre a voz de uma pessoa que tinha passado grande parte de sua vida sob o poder da URSS.
Aquela família me deu ícones de Nossa Senhora e terços para que os levasse a Estônia. Arrisquei-me, embora estivesse rigorosamente proibido levar na maleta material religioso ou pornográfico (recebiam a mesma consideração). A princípio não sabia onde escondê-los, até que tive a ideia de colocá-los no fundo de uma caixa de bombons.
Quando cheguei com meu grupo à fronteira estava muito nervosa, porque os funcionários da alfândega se comportavam de forma arbitrária: tanto podiam revistar a todos nós, dos pés à cabeça, como deixar-nos passar sem problemas. Se encontrassem algo suspeito entre os pertences, desnudavam a pessoa e revistavam conscienciosamente tudo o que levava: pegavam o tubo da pasta de dentes, por exemplo, e o esvaziavam por completo. O funcionário se aproximou, viu que éramos das juventudes comunistas da Estônia e ordenou a um do grupo que abrisse a mala que levava. Eu continuava rezando: se me descobrissem, as consequências seriam terríveis, para minha família e para mim.– Podem passar – disse, ao terminar a revista.
Respirei fundo e baixei a cabeça para que não demonstrasse em meu rosto o alívio interior que senti ao escutar suas palavras.

Continua. Amanhã, última parte.

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