domingo, 11 de setembro de 2016

PIO XII CONDENA A MORAL DE SITUAÇÃO


Discurso do Papa Pio XII ao Congresso Internacional da Federação Mundial da Juventude Feminina Católica

O tema do Congresso
Sejam bem-vindas filhas amadas da Federação Mundial da Juventude Feminina Católica. Eu vos saúdo com o mesmo carinho que recebi, há cinco anos em Castel Gandolfo, por ocasião do grande encontro internacional das Mulheres Católicas.
Os estímulos e os sábios conselhos que foram proporcionados a vocês neste Congresso, assim como as palavras que então dirigimos não foram certamente infrutíferos. Sabemos os esforços que neste intervalo vocês têm desenvolvido para atingir os objetivos precisos dos quais vocês tinham uma visão clara. Isso também prova o relatório impresso durante a preparação deste Congresso que fizemos lá: “La Foi des Jeunes – Problème de notre temps”. Suas 32 páginas têm o peso de um grosso volume, e Nós temos analisado com muito cuidado, porque resume e sintetiza os ensinamentos de numerosas questões sobre a situação da fé na juventude católica da Europa, cujas conclusões são altamente instrutivas.
Em muitas das questões levantadas lá, Nós mesmos tratamos em nossa alocução de 11 de setembro de 1947 (1), que vocês assistiram, e em muitos outros discursos antes e depois. Hoje, Nós queremos aproveitar a oportunidade proporcionada por este encontro com vocês para dizer o que pensamos sobre um fenômeno que ocorre em todos os lugares, na vida de fé dos católicos e que afeta um pouco a todos, mas de uma forma particular afeta os jovens e seus educadores, como quando vocês dizem (p. 10): “Confundindo o cristianismo com um código de preceitos e proibições, os jovens têm a impressão de afogar-se nesse clima de “moral imperativa” e não é uma pequena minoria que deixa de lado esse “fardo constrangedor.”
Uma nova concepção da lei moral
Podemos chamar esse fenômeno de “uma nova concepção da vida moral”, uma vez que é uma tendência que se manifesta no campo da moralidade. No entanto os princípios da moralidade se baseiam nas verdades da fé e vocês sabem bem que é importância capital para a conservação e o crescimento da fé que a consciência da jovem se forme o mais cedo possível e se desenvolva segundo as normas morais justas e saudáveis. Assim, a concepção de “nova moralidade cristã” toca muito diretamente o problema da fé dos jovens.
Já falamos da “nova moral” em nossa mensagem de rádio em 23 de março passado, para os educadores cristãos. O que estamos discutindo hoje não é apenas uma continuação do que dissemos então; queremos descobrir as profundas origens dessa concepção. Pode-se qualificá-la de “existencialismo ético” de “realidade ética” do “individualismo ético”, entendidas em sentido estrito que vamos explicar e tal como se encontram no que em outros lugares se tem chamado de “Situationsethik” “moral de situação”.
A “moral de situação”, seu caráter distintivo
A marca desta moral é que ela não é de forma alguma baseada em leis universais de moral, por exemplo, os dez mandamentos, mas em condições ou circunstâncias reais e concretas nas quais se deve agir e de acordo com as quais a consciência individual vai julgar e escolher. Este estado de coisas é ação humana. É por isso que a decisão de consciência, afirmam os defensores desta ética, não pode ser comandada pelas idéias, os princípios e as leis universais.
A fé cristã baseia as suas exigências morais no conhecimento da verdade “essencial” e de suas relações; assim faz São Paulo na Epístola aos Romanos (1, 19-21) para a religião como tal, seja esta cristã ou anterior ao Cristianismo: a partir da criação, diz o Apóstolo, o homem percebe e sente de alguma forma o Criador, o seu eterno poder e divindade, e que, com tais provas de que ele sabe e sente-se compelido a reconhecer Deus e dar algum culto, de modo que desprezar este culto ou depravá-lo na idolatria é gravemente culpável para todos e em todos os tempos.
Isto não é, de modo algum, o que afirma a ética sobre a qual Nós falamos. Ela não nega os conceitos e princípios morais gerais (embora às vezes chegue muito perto de semelhante negação), mas se move do centro para a extrema periferia. Pode acontecer que a decisão de consciência muitas vezes esteja de acordo com ela. Mas não são, por assim dizer, uma coleção de premissas a partir do qual a consciência tira as conseqüências lógicas, no caso particular, o caso “de uma vez”. De jeito nenhum! No centro se encontra o bem, que é necessário realizar ou manter o seu valor real e individual, por exemplo, no domínio da fé, a relação pessoal que nos une a Deus. Se a consciência formada seriamente diz que o abandono da fé católica e a adesão a outra confissão leva para mais perto de Deus, esse passo seria “justificado”, quando é geralmente descrito como “a deserção da fé”. Ou, no campo da moral, a doação de si mesmo, corporal e espiritual, entre os jovens. Aqui a consciência seriamente formada estabeleceria que devido a sincera inclinação mútua são permitidas intimidades do corpo e dos sentidos, e estas, embora permitidas apenas entre cônjuges, poderiam ser manifestações permitidas. (A consciência aberta de hoje estabeleceria assim porque deduz da hierarquia de valores este princípio, segundo o qual os valores da personalidade, sendo os mais altos, poderiam utilizar os valores inferiores do corpo e dos sentidos ou descartá-los, como sugerido por cada situação). Tem sido dito com insistência que precisamente segundo este princípio, em matéria de direitos dos cônjuges seria necessário, em caso de conflito, deixar à consciência séria e reta dos cônjuges, de acordo com as exigências das situações concretas, o poder de tornar absolutamente impossível a realização dos valores biológicos a favor dos valores da personalidade.
O parecer de uma consciência desta natureza, por muito contrário que pareça à primeira vista aos preceitos divinos, valeria, no entanto, diante de Deus, porque, dizem eles, a consciência sincera seriamente formada é mais importante diante de Deus do que o “preceito” e a “lei”.
Esta decisão é, portanto, “ativa” e “produtora” e não “passiva” e “receptiva” da decisão da lei escrita por Deus no coração de cada um, e menos, todavia da do Decálogo, que o dedo de Deus esculpiu em tábuas de pedra, encarregando a autoridade humana a promulgá-la e preservá-la.
A “nova moral” eminentemente “individual”
A nova ética (adaptada às circunstâncias), dizem seus autores, é essencialmente “individual“. Na determinação da consciência cada homem, em particular se entende diretamente com Deus e diante Dele se decide sem a intervenção de nenhuma lei, nenhuma autoridade, nenhuma comunidade, de nenhum culto ou religião, em nada e de nenhuma maneira. Aqui tudo que há é o eu do homem e o Eu do Deus pessoal; não o Deus da lei, mas sim Deus Pai, ao qual o homem deve unir-se com amor filial. Visto por este prisma, a decisão da consciência é, portanto, um “risco pessoal”, segundo o conhecimento e a valorização próprias, com toda a sinceridade diante de Deus. Estas duas coisas, a intenção correta e resposta honesta, são o que Deus vê, a ação não se importa. De maneira que a resposta pode ser a de alterar a fé católica por outros princípios, de divorciar-se, de fazer aborto, de recusar obediência à autoridade competente na família, na Igreja, no Estado e assim em outras coisas.
Tudo isso seria perfeitamente compatível com o estatuto de “maioridade” do homem e, na ordem cristã, com a relação de filiação, e em virtude do qual, de acordo com os ensinamentos de Cristo, Nós oramos “Pai Nosso…”. Esta abordagem pessoal poupa ao homem o dever medir a cada momento se a decisão que há de tomar corresponde aos artigos da lei ou aos cânones das normas e regras abstratas; ela se preserva da hipocrisia de uma fidelidade farisaica à lei; ela se preserva tanto do escrúpulo patológico como da tenuidade ou falta de consciência, porque, faz cair pessoalmente sobre o cristão a responsabilidade total diante de Deus. Assim falam aqueles que pregam a “nova moral”.
Está fora da fé e dos princípios católicos
Exposta desta forma a nova ética, ela está tão totalmente fora da fé e dos princípios católicos que até uma criança que conhece seu catecismo percebe isso. Por conseguinte, não é difícil ver como o novo sistema moral deriva do existencialismo, que faz abstração de Deus ou simplesmente O nega e em todo caso abandona o homem a si mesmo. Pode ser que as condições atuais tenham levado a esta tentativa de transplantar esta “moral nova” ao terreno católico para tornar suportável aos fiéis as dificuldades da vida cristã. De fato, a milhões deles se exige hoje em um grau extraordinário que se tenha firmeza, paciência, constância e espírito de sacrifício, se quiserem permanecer íntegros em sua fé, quer sob os golpes da fortuna, ou sob as seduções de um ambiente que põe ao alcance de suas mãos tudo aquilo que forma a aspiração e o desejo de seu coração apaixonado. Mas semelhante tentativa jamais poderá ter êxito.
As obrigações fundamentais da lei moral
Alguém pode se perguntar como a lei moral, que é universal, pode bastar e até mesmo ser obrigatória em um caso particular, o qual, em sua situação particular é sempre único e de “uma vez”. Ela pode e ela o faz, porque, precisamente por causa de sua universalidade, a lei moral inclui necessária e “intencionalmente” todos os casos particulares nos quais se verificam seus conceitos. E nestes casos, muito numerosos, ela o faz com uma lógica tão conclusiva, que até a consciência de um simples fiel percebe de imediato e com absoluta certeza a decisão a tomar.
Isto é especialmente verdadeiro para obrigações negativas da lei moral, aquelas que exigem um “não fazer”, um “deixar de lado”. Mas de nenhuma maneira para estas somente. As obrigações fundamentais da lei moral baseiam-se essencialmente na natureza do homem e suas relações essenciais, e valem, por conseguinte em todas as partes nas quais se encontre o homem; as obrigações fundamentais da lei cristã, ultrapassando, portanto, as da lei natural, são baseadas na essência da ordem sobrenatural constituída pelo divino Redentor. Das relações essenciais entre o homem e Deus, entre o homem e o homem, entre cônjuges, entre pais e filhos; das relações essenciais de comunidade na família, na Igreja, no Estado, resulta, entre outras coisas, que o ódio a Deus, a blasfêmia, idolatria, a defecção da fé verdadeira, a negação da fé, o perjúrio, o assassinato, o falso testemunho, a calúnia, o adultério, a fornicação, o abuso do matrimônio, o pecado solitário, o furto e o roubo, a subtração do que é necessário à vida, a fraude no salário justo (Tg 5, 4), a monopolização de produtos alimentares de primeira necessidade e os aumentos injustificados dos preços, a falência fraudulenta, as manobras de especulações injustas: tudo isso é severamente proibido pelo Legislador divino. Não há nenhuma razão para duvidar. Seja qual for a situação do indivíduo, não há escolha senão obedecer.
Além disso, Nós opomos à ética da situação três considerações. A primeira: concedemos que Deus queira acima de tudo e sempre a intenção correta; mas esta não é suficiente. Ele quer também a boa obra. A segunda: não é permitido fazer o mal para que resulte o bem (Rom 3, 8). Mas esta ética age – talvez sem perceber – pelo princípio de que o fim santifica os meios. A terceira: pode haver circunstâncias nas quais o homem – especialmente o cristão – não possa ignorar que deve sacrificar tudo, até mesmo sua vida, para salvar sua alma. Todos os mártires nos lembram disso. E estes são muito numerosos mesmo ainda em nosso tempo. A mãe dos Macabeus e seus filhos, as santas Perpétua e Felicidade, apesar de seus recém nascidos, Maria Goretti e milhares de outros, homens e mulheres que a Igreja venera, teriam, portanto, contra a “situação” incorrido inutilmente ou até mesmo equivocando-se na morte sangrenta? Certamente que não, e eles, com seu sangue, são as testemunhas mais eloqüentes da verdade contra a “nova moral”.
O problema da formação da consciência
Onde não há regras absolutamente obrigatórias, independente de qualquer circunstância ou evento, a situação “de uma vez” em sua unidade exige, de fato, uma análise aprofundada para decidir quais as regras a serem aplicadas e como. A moral católica tratou sempre e com extensão este problema da formação da própria consciência com o exame prévio das circunstâncias do caso a ser resolvido. Tudo o que ela ensina fornece uma valiosa ajuda nas determinações da consciência tanto teóricas quanto práticas. Basta citar os ensinamentos, não superados, de Santo Tomás sobre a virtude cardeal da prudência e as virtudes a ela associadas (Suma Teológica, 2-2, q. 47-57). Suas explicações revelam um sentido da atividade pessoal e da realidade, que contém tudo o que é justo e positivo na ética segundo a “situação” e evita todas as confusões e distorções. Bastará, portanto, ao moralista moderno continuar na mesma linha, se quiser aprofundar os novos problemas.
A educação cristã da consciência está muito longe de esquecer a personalidade, inclusive dos jovens e crianças, e de eliminar sua iniciativa. Porque toda boa educação tende a tornar o educador mais desnecessário gradualmente e ao educando independente dentro dos justos limites. E isso também é verdade na educação da consciência por Deus e pela Igreja: o seu objetivo é, como diz o apóstolo (Ef 4, 13, cf. 4, 14) “um homem perfeito, à medida da plenitude de Cristo“. Portanto, o homem adulto, tem também o brio da responsabilidade.
É necessário apenas que esta maturidade se coloque no lugar certo! Jesus continua a ser o Senhor, o Chefe e o Mestre de cada homem de todas as idades e de todos os estados, através da sua Igreja, através da qual Ele continua a agir. O cristão, por sua vez, deve assumir o grave e grande compromisso de fazer valer em sua vida pessoal, em sua vida profissional e na vida social e pública, no que depender dele, a verdade, o espírito e a lei de Cristo. Esta é a moral católica, o que deixa um vasto campo aberto à iniciativa particular e à responsabilidade pessoal do cristão.
A nova moral traz grandes perigos para a juventude
Eis aqui o que eu nós quisemos dizer. Os perigos para a fé dos nossos jovens são hoje extraordinariamente numerosos. Todos sabiam e sabem, mas a vossa memória é particularmente instrutiva a este respeito. No entanto, acreditamos que poucos destes perigos são tão grandes e tão cheios de conseqüências como os que a “nova moral” traz para a fé. Os extravios a que tanto levam tais distorções como o enfraquecimento dos deveres morais, que fluem naturalmente de fé, terminariam com o tempo a corromper a própria fonte. Assim a fé morre.
Fé Orante e Sacrificada
De tudo o que Nós dissemos sobre a fé, vamos tirar duas conclusões, duas diretrizes que Nós queremos deixar no final, para que elas orientem e incentivem toda a vossa ação e toda a vossa vida de cristãs corajosas:
A primeira: a fé da juventude deve ser uma fé “orante”. A juventude deve aprender a orar. Que isso seja sempre na medida e forma que correspondam à sua idade. Mas sempre conscientes de que sem oração não é possível manter-se fiel à fé.
A segunda: a juventude deve ter orgulho de sua fé e aceitar que “custe” algo; ela deve se acostumar desde cedo a fazer sacrifícios por sua fé, a caminhar diante de Deus com uma consciência reta, a reverenciar Suas ordens. Então crescerão espontaneamente no amor de Deus.
Que a caridade de Deus, a graça de Jesus Cristo e a comunicação do Espírito Santo (2 Cor 13, 13) estejam com vocês todas é o que desejamos com o afeto mais paternal. E para testemunharmos isso damos de todo o coração a cada uma de vós e às vossas famílias, aos seus movimentos, a todas as suas ramificações mundo inteiro, a todas as vossas companheiras que a elas pertencem a Bênção Apostólica.
Papa Pio XII
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Original publicado na Acta Apostolica Sedis (AAS) vol. 44, página 413. Disponível aqui.
Notas:
(1) Discorsi e Radiomessaggi, IX, pag. 221-233.



quarta-feira, 27 de julho de 2016

“O DRAMA DA MORAL CATÓLICA”. OUVIMOS A ADVERTÊNCIA DO CARDEAL RATZINGER?


Valter de Oliveira



Em 1985 foi publicado o livro “A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga. Nele, em entrevista a Vitorio Messori, o então prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, aborda a questão da crise da Igreja no mundo contemporâneo. Citamos aqui partes do capítulo VI, “O Drama da Moral”. Os destaques em negrito são nossos. Cremos que o artigo é de suma importância para entendermos o que está acontecendo hoje na Igreja (V.O.).



Cardeal Ratzinger
Cardeal Ratzinger: “A mentalidade atualmente dominante agride os fundamentos mesmos da moral da Igreja, que, como observava há pouco, se permanece fiel a si mesma corre o risco de parecer um anacrônico e inoportuno corpo estranho. Assim, para tentar ser “críveis” os teólogos morais do Ocidente acabam por deparar com uma alternativa: parece-lhes terem de escolher entre a divergência com a sociedade atual ou a divergência com o Magistério. Conforme o modo de enunciar a questão, é maior ou menor o número daqueles que preferem este último tipo de discordância e que, consequentemente, se põem à procura de teorias e sistemas que permitam meios termos entre catolicismos e as concepções correntes. (...) Essa diferença crescente entre Magistério e “novas” teologias morais provoca consequências incalculáveis” (...) (p. 61,62)

(...) Hoje, o âmbito da teologia moral tornou-se o ponto principal das tensões entre Magistério e teólogos, especialmente porque nele as consequências tornam-se imediatamente visíveis. Poderia citar algumas tendências: algumas vezes são justificadas as relações pré-matrimoniais, pelo menos em certas condições; a masturbação é vista como um fenômeno normal no crescimento dos adolescentes; a admissão dos divorciados recasados aos sacramentos é continuamente reivindicada (1); o feminismo, mesmo o radical, parece ganhar terreno a olhos vistos na Igreja, especialmente em algumas Ordens religiosas femininas (2) (...). Até mesmo com relação ao problema do homossexualismo existem tentativas de justificação: aconteceu até que bispos, por insuficiente formação ou por um senso de culpa dos católicos para uma “minoria oprimida”, puseram a Igreja à disposição dos gays para as suas manifestações.  Há ainda o caso da Humanae Vitae, a encíclica de Paulo VI que reafirma o “não” às contracepções e que não foi compreendida, pior ainda, foi mais ou menos abertamente rejeitada por vastos setores eclesiais” (p.62).

Vittorio Messori
“Depois, diz Messori, o cardeal explica como o desenvolvimento de certa teologia moral foi gradualmente minando os “argumentos fundamentais da teologia fiel ao Magistério”. Ele explica como, a partir dos anos 30 e 40 “alguns teólogos moralistas católicos, partindo do ponto de vista da filosofia personalista, começaram a criticar a unilateralidade da orientação da moral sexual católica com relação à procriação. Eles chamavam a atenção, sobretudo, para o fato de a abordagem clássica do matrimônio no direito canônico, a partir dos seus fins, não exprimir plenamente o fenômeno propriamente humano” (63)

“Esses teólogos personalistas – é dito logo depois, influenciaram o Concílio que “acolheu e confirmou os melhores aspectos dessas reflexões. Mas justamente então começou a se manifestar uma outra linha de desenvolvimento. Enquanto as reflexões do Concílio se baseavam na unidade de “pessoa” e “natureza” no homem, passou-se a entender “personalismo” como contraposto a “naturalismo”, isto é, como se a pessoa humana e suas exigências pudessem entrar em conflito com a natureza. Dessa forma, um personalismo exagerado levou teólogos a negar a ordenação interna, a linguagem da natureza (que é aliás, por si mesma moral, como afirma o constante ensinamento católico) deixando à sexualidade, também conjugal, como único ponto de referência a vontade da pessoa”. (63).

(...) “Imediatamente após o Concílio, começou-se a discutir se existiam normas morais especificamente cristãs. Alguns chegaram a concluir que todas as normas podem ser encontradas também fora da ética cristã e que, de fato, a maior parte das normas cristãs foi tirada de outras culturas, em particular da antiga filosofia clássica, especialmente a estoica. Desse falso ponto de partida chegou-se inevitavelmente à ideia de que a moral deve ser constituída unicamente à base da razão e que essa autonomia da razão é válida também para os crentes. Não mais Magistério, portanto, não mais o Deus da Revelação com os seus mandamentos. Com efeito, existem hoje moralistas “católicos” que afirmam ser o decálogo, sobre o qual a Igreja construiu sua moral objetiva, um mero “produto cultural” (3) ligado ao Oriente Médio semita. Portanto, uma regra relativa, dependente de uma antropologia e de uma história que não são mais as nossas. Volta aqui, pois, a negação da unidade da Escritura, reaparecendo a antiga heresia que declarava o Antigo Testamento (lugar da “Lei”) superado e rejeitado pelo Novo (reino da “Graça”). Mas, para o católico, a Bíblia é um todo unitário, as Bem-aventuranças de Jesus não anulam o decálogo entregue por Deus a Moisés e, através dele, aos homens de todos os tempos. Pelo contrário, segundo estes novos moralistas,  nós , “homens já adultos e libertados”, devemos procurar sozinhos outras normas de comportamento”.

“Uma busca, pergunto eu (Messori), a ser feita apenas com a razão? (64)

“Exatamente, como tinha começado a dizer. Sabe-se, no entanto, que para a moral católica autêntica, existem ações que nenhum motivo poderá jamais justificar, contendo em si mesmas uma recusa do Deus Criador e, por conseguinte, uma negociação do bem autêntico do homem, sua criatura. Para o Magistério, existem sempre pontos firmes, balizadores, que não podem ser suprimidos nem ignorados sem quebrar o liame que a filosofia cristã vê entre o Ser e o Bem. Proclamando, pelo contrário, a autonomia da razão humana sozinha, separados do decálogo, foi preciso procurar novos pontos firmes: onde agarrar-se, como justificar os deveres morais, se estes não têm mais raízes na Revelação Divina, nos Mandamentos do Criador?” (p.64)

- “E então?”. (pergunta Messori)

“E então se chegou à chamada “moral dos fins” ou, como se prefere chamar nos Estados Unidos, onde ela foi elaborada e difundida, à “moral das consequências”, o “consequencialismo”, nada é em si mesmo bom ou mau, a bondade do ato depende unicamente do seu fim e das suas consequências previsíveis e calculáveis.”(p.65).


Passaram-se 31 anos. Quem acompanha a história da Igreja sabe que, apesar de admoestações como essa e muitas outras, apesar dos documentos promulgados pelos papas S. João Paulo II e Bento XVI, a influência dessa moral nefasta foi crescente no clero e mesmo no episcopado. Basta ver que no sínodo de 2014 praticamente 60% dos bispos ali presentes defenderam as propostas aqui criticadas pelo cardeal.


Notas:


1.      Há muito essa proposta é defendida pelas conferências episcopais da Alemanha e da França. No Sínodo de 2014 seu principal advogado foi o cardeal Kasper.
2.      Exemplo disso vemos em grupo de freiras americanas pertencentes à Conferência de Liderança de Mulheres Religiosas (LCWR em inglês).  As religiosas membros da LCWR - que conta com 1.500 delegadas para representar 57.000 freiras, cerca de 80% das religiosas dos Estados Unidos - defendem a ordenação de mulheres sacerdotisas e evitam condenar o uso da pílula, a eutanásia e a união de casais do mesmo sexo.

É interessante notar que as freiras são bem vistas por seu intenso trabalho social...




3.      Ou seja, exatamente como afirmam os teóricos da ideologia de gênero  que afirmam que toda a moral tida por objetiva na sociedade ocidental é uma mera construção histórica e, portanto, sem valor em nossos dias (V.0.).






terça-feira, 12 de julho de 2016

TEM A IGREJA O QUE APRENDER COM LUTERO?







Valter de Oliveira



Dom Helder Camara
ANO DE 1967. Estávamos já na época do diálogo e do ecumenismo. Centenário da Faculdade de Teologia da Igreja metodista do Brasil, em Santo André, São Paulo. Os 21 integrantes da nova turma de pastores tinham que escolher um paraninfo para sua formatura que simbolizasse bem a nova maneira de encorajar a religião e a sociedade temporal. Não foi difícil encontrar o homem adequado, então sempre nas primeiras páginas dos jornais, famoso, viajado, controvertido. Seu nome: D. Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife. Os pastores o elegeram por unanimidade, a fim de expressar o ecumenismo e “a perfeita identificação dos protestantes com os católicos na nova maneira de encarar a missão social dos religiosos”
No dia da cerimônia D. Helder iniciou seu discurso com a seguinte oração:
“Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai da Misericórdia e Deus de toda consolação. Bendito seja, pela alegria desta noite impensável para vós e para nós, anos atrás”.
O Arcebispo vermelho finalizou seu discurso dizendo: “Se Deus permitisse que Lutero nos aparecesse agora e nos falasse, certamente nos diria que para ser digna de Cristo, para viver a responsabilidade e a alegria de ser cristã, e poder efetivamente ajudar a humanidade, a Igreja precisa não apenas de uma Reforma, realizada de uma vez e para sempre, mas de uma Reforma permanente, de todos os dias, todas as horas e todos os instantes” (cf. “O Estado de São Paulo” de 12 de dezembro de 1967).
Lutero, apóstata e herege, aconselhando a Igreja infalível! Palavras estranhas nos lábios de um bispo católico e, realmente impensáveis para nós, anos atrás!… De onde essa mudança? Teria a Igreja errado ao condenar Lutero?
“Sim, dirá um progressista, errou. Ela não soube conquistar os reformadores, pois só sabia condenar e excomungar. E Lutero, no fundo era um bom homem, bem intencionado e humilde, que se escandalizara com o triunfalismo da Igreja e com os abusos do Clero da época. Resultado: foi mal compreendido. Se houvesse naqueles tempos homens como D. Helder, arejados, evoluídos, abertos ao diálogo, talvez tudo tivesse sido diferente. Mas agora, o que fazer? Nada. A não ser a Igreja se penitenciar de sua intolerância, rezar Missa por Lutero, como fizeram vários bispos, por ocasião do 450º aniversário da eclosão da Reforma e admitir os valores do protestantismo”.
“A Igreja errou”; “Lutero era um homem bem intencionado”. Consultemos a História, vejamos os documentos. Leiamos as próprias palavras do reformador. Julgue o leitor depois se, como diz D. Helder, O Corpo Místico de Cristo necessita aprender algo com o irrequieto ex-monge de Wittemberg.

Um juízo humilde sobre si mesmo

- “Desde há milhares de anos, diz Lutero, Deus não deu a nenhum bispo atributos tão grandes quanto a mim. Não nos devemos sentir felizes com os favores de Deus? Também eu próprio me detesto por não ter extraído de tudo isso grande alegria” (FB 241) (*).
- “Muito embora a Igreja, Agostinho e os outros doutores, Pedro e Apolo e até um anjo do Céu ensinem o contrário, minha doutrina é tal que só ela engrandece a graça e a glória de Deus e condena a justiça de todos os homens na sua sabedoria” (LF 179).
-“Quem não crê como eu é destinado ao inferno. Minha doutrina e a doutrina de Deus são a mesma coisa. Meu juízo é o juízo de Deus”. “Tenho certeza de que meus dogmas vêm do céu”. (LF 179).
Livre exame, sem dúvida…

 

Sê pecador e peca firmemente

Os dez mandamentosPara Lutero, os mandamentos eram inúteis para a salvação. Podiam até ser nocivos: “A lei não pode dar senão a morte. Ela não é boa nem útil, mas simplesmente nociva (…) No fundo, ela não é senão morte e veneno”(DTC 1242). “A lei foi ab-rogada (…) porque, mesmo não cumprida, ela não condena(DTC 1249).
Por sua negação da Lei, o reformador dizia de Moisés“Quanto a Moisés, tende-o por suspeito, como o pior dos heréticos, um homem excomungado e danado, que é pior ainda que o Papa e pior que o próprio diabo; é o inimigo do Senhor Jesus Cristo” (Rohr. 147). “Não aceitamos Moisés, ele só é bom para os judeus; não nos foi enviado por Deus” (FB 190).
E ainda: “Se te falam de Moisés para te constranger a aceitar-lhe os mandamentos, responde-lhes atrevidamente:
- “Vai falar de teu Moisés aos judeus! Não sou judeu, deixa-me em paz” (FB 190).
Compreende-se assim a vida dissoluta que o ex-monge agostiniano levava, bem como os conselhos que dava.
Jerônimo Weller, seu amigo, era vítima de frequentes ataques de melancolia. Em julho de 1530, recebeu do Dr. Lutero uma receita “medicinal e espiritual”:
Quando o diabo te vexar com estes pensamentos, conversa com os amigos, bebe mais largamente, joga, brinca, ou ocupa-te em alguma coisa. De quando em quando se deve beber com mais abundância, jogar, divertir-se, e mesmo fazer algum pecado em ódio e acinte ao diabo para não lhe darmos azo de perturbar a consciência com ninharias… Quando te disser o diabo: não bebas, responde-lhe: por isso mesmo que me proíbes, hei de beber e em nome de Jesus Cristo beberei mais copiosamente… Por que pensas que eu bebo, assim, com mais largueza, cavaqueio com mais liberdade e banqueteio-me com mais frequência, senão para vexar e ridicularizar o demônio que me quer vexar e ridicularizar a mim?… Todo o decálogo se nos deve apagar dos olhos e da alma; a nós, tão perseguidos e molestados pelo diabo”. (LF 187).
Veja-se ainda esta carta a Melanchton, de 1º de agosto de 1521:
“Sê pecador e peca firmemente, mas com mais firmeza ainda crê e alegra-te em Cristo, vencedor do pecado e da morte e do mundo. Durante a vida devemos pecar bastante. Basta que pela misericórdia de Deus conheçamos o cordeiro que tira os pecados do mundo. Dele não nos há de separar o pecado, ainda que em um dia, cometêssemos mil fornicações e mil homicídios” (DTC 1247).

Um homem de boa fé e coerência

Após a famosa questão das indulgências, em 1517, Lutero, ainda não excomungado, continuava protestando sua fidelidade à Igreja. Em 1519 escreve:
- “Confesso plenamente o supremo poder da Igreja Romana: fora de Jesus Cristo, Senhor Nosso, nada no céu e na terra se lhe deve preferir”. “É a predileta de Deus; não pode haver razão alguma, por mais grave, que autorize a quem quer que seja apartar-se dela e, com o cisma, separar-se da sua unidade” (LF 181). Porém, no ano seguinte, dirá que a Igreja é uma licenciosa espelunca de ladrões, o mais impudente dos lupanares (*), o reino do pecado, da morte e do inferno”. (LF 181)
Filipe de Hesse e sua esposa Christina
Lutero e mais alguns reformadores – Melanchton e Bucer – permitiram a bigamia do Landgrave Filipe de Hesse, desde que o segundo casamento ficasse em segredo. Quando o caso se propagou o Landgrave (*) quis publicar o documento de autorização do matrimônio; Lutero tentou impedir a todo transe a publicação, alegando ter sido um “conselho de confissão” (Beichtrat)”; por sua própria natureza devia permanecer secreto. Ameaçou o Landgrave, lembrando-lhe os editos imperiais contra os bígamos.
Margarete de Saale - a segunda esposa de Filipe de Hesse

-“Quanto a mim, saberei tirar-me do embaraço – Deus virá em meu auxílio – deixando Vossa Graça se atolar”.
Filipe, amedrontado (a bigamia era punida com a morte), achou por bem guardar o “conselho de confissão”, que não virá à luz senão um século mais tarde.
Aos íntimos Lutero dirá gracejando:
-“Bah! Que fazem os papistas? Matam as pessoas; nós criamos vidas desposando duas mulheres de uma só vez” (FB 214). Afinal, “que mal haveria em um homem, para levar a cabo coisas boas e para o bem da Igreja cristã (leia-se luterana), dizer uma boa e grossa mentira?” (Espasa, Lutero, 875).
Vemos também a honestidade de Lutero na sua tradução da Bíblia. São Paulo escreve:
“Nós, os justos, somos justificados pela Fé”. Na tradução o reformador acrescentou a palavra “só”, o que implicava na não necessidade das boas obras. Como seus amigos se mostrassem admirados, pois essa palavra não se encontra nem no texto latino, nem no grego, Lutero escreveu a um deles:
- “Parece que vós estáveis surpresos de que eu tenha dito que nós somos justificados pela fé só, já que essa palavra não se acha no texto do apóstolo. Se vosso papista vos chicana por causa dessa palavra, dizei a ele que um papista e um asno são uma só coisa. Toda a razão que tenho a dar a esta adição, é que eu quero que a palavra “só” aí esteja,; eu o ordeno, minha vontade deve servir de razão” (Rohr 146-147).
(…)

Colóquios com o diabo

As manifestações diabólicas de Wartburgo ficaram célebres na vida do ex-monge agostiniano, mas não eram novidade. Ele mesmo dizia: “Conheço o diabo a fundo, de pensamento e de aspecto, tendo comido em sua companhia mais de uma pipa de sal”. Em seus últimos anos irá declarar: “O diabo dormiu ao meu lado, em minha cama, mais vezes do que minha mulher” (FB 117).
- “Às vezes – escreve o historiador protestante Funck Brentano – o reformador tinha com o Espírito do Mal longas conversas; dava-lhe ouvidos aos argumentos. Aconteceu deixar-se convencer por eles. Por sua própria confissão, esta e aquela parte de sua doutrina, nascem dessas infernais discussões” (FB 123).
Nicola anotou, em suas Prevenções legítimas contra os calvinistas: “Nunca houve ninguém, a não ser Lutero, que se tivesse gabado, numa obra impressa, de ter tido uma longa conferência com o diabo; que se tinha convencido de suas razões de que as missas privadas eram um abuso, e que era esse o motivo que o tinha levado a aboli-las” (FB 124).

Liberdade, liberdade…

Costuma-se dizer que um dos bens que a Reforma trouxe, foi – graças ao princípio do livre exame – a tolerância. Por esta razão, Lutero se indignara contra a Inquisição, exclamando: - “Queimar os hereges é contra a vontade do Espírito Santo”. “Não se deve obrigar ninguém a crer, escrevia em 1527, nem expulsá-lo pela incredulidade, por lei “ou constrangimento”; Cristo só quer servos benévolos” (FB 203 e 206).
Mais uma vez, consultemos a História.
Carlstadt – herege e apóstata, ex-Arcediago na colegiada de Wittemberg – que divergia de Lutero na questão da Eucaristia, foi perseguido e expulso da Saxônia por decreto obtido pelo reformador de Wittemberg. Não o readmitiu senão com a promessa de não defender em público, por palavras ou por escrito, suas opiniões. Por não cumprir a palavra, Carlstadt foi de novo perseguido e fugiu. Lutero lamentou a misericórdia dos príncipes nessa ocasião: -“Em outros reinos ele evitou promover distúrbios com sua impertinências, pois poderiam fazer-lhes dançar a cabeça, como as de seus discípulos, com uma clara lâmina de aço. Os príncipes de Saxe foram demasiado pacientes com esse miolo virado. Se tivessem sabido manejar mais prontamente o gládio, o espírito de Deus sentir-se-ia melhor”. (FB 206).
Naturalmente, o papa de Wittemberg restabeleceu a excomunhão. Quanto aos obstinados, diz Lutero, “que vão para o diabo”. Depois de mortos serão jogados no monturo. Aqueles mesmos que não têm fé devem ser obrigados a assistir aos sermões. Monges, curas e todos os tonsurados devem ser degolados: “Eu mesmo me ocuparei da missão, bandos de patifes, que não são bons senão para desaparecer”. Lutero chegou a instituir visitadores, inquisidores que penetravam nas famílias a fim de se informar se tudo se passava conforme suas prescrições (FB 204).
-“Senta-te, pois, no trono pontifício!” – grita-lhe um desses dissidentes, chamado Ickelsamer – “tu que não queres ouvir cantar senão tua própria canção!” Ao que Lutero respondia: -“Nós reivindicamos o governo das consciências e não queremos deixar-nos espoliar” (FB 205).
“Não se deve obrigar ninguém a crer”… “Cristo só quer servos benévolos”…

“Amor” aos camponeses

Na Europa, a Igreja desempenhou um árduo trabalho de formação, que lhe exigiu o sangue de inúmeros mártires, dulcificando os costumes, aproveitando as qualidades dos bárbaros e dos romanos, e extirpando os defeitos de ambos. Nascia assim a Idade Média, que Montalembert chamou “a doce primavera da Fé”. Foi na Europa medieval que se conheceu, pela primeira vez na História, um continente inteiro sem escravidão.
Com a Pseudo-Reforma e a Renascença, ensinou-se que o povo era sacerdote, que o homem era o centro de tudo. A Revolução nascente prometia liberdade. Contudo, como já vimos, o que se fez foi destruí-la e restaurar a barbárie do paganismo. A este respeito Lutero dirá:
-“A servidão deve ser restabelecida tal como existia entre os judeus”. “Eu sou o maior inimigo de todos os camponeses”, “eles são brutos”, apenas a miséria pode impedi-los de se conduzirem como animais ferozes” (FB 164).
D. Helder aceitaria este conselho para o Nordeste?
Quando Tomás Munzer – que consequente com as doutrinas luteranas, pregava um comunismo religioso – agitou o povo no campo, Lutero ficou indignado. A 6 de maio de 1525 publicou seu terrível panfleto “Contra as hordas homicidas e bandoleiras dos camponeses”.
-“Vamos, mãos à obra! Matar um revoltado não é cometer um assassínio, mas ajudar a extinguir um incêndio. Também não se trata de ir de mãos vazias. Esmagai! Degolai! Trespassai de todo modo! Matar um revoltoso é abater um cão danado”. E em outra ocasião: “Também em circunstâncias semelhantes não é o próprio Deus que, por nossas mãos, enforca, tortura, fulmina e decapita?” (FB 162)
Lutero costumava conversar à mesa (***) com seus amigos que anotavam frases como estas: “Um camponês cristão não é mais que uma ferradura de madeira”. “Um camponês é um porco, pois quando se mata um porco ele fica morto” (FB 165).
-“Grande benção de Deus, dizia contemplando o filho, esses brutos camponeses não são dignos disso, não lhes deviam nascer senão porcos” (FB 165).
  
Isto pode ser amor a Deus?

Martinho Lutero pregando no Castelo Wartburg
Seria apenas para os pequenos, para o povo, ou para quem quer que não pensasse como ele, que Lutero tinha palavras tão duras? Nos lábios de Lutero encontramos palavras que só se pode transcrever fazendo ao mesmo tempo um ato de reparação a Deus Nosso Senhor e aos seus Santos. São blasfêmias que dispensam qualquer comentário.
Fiel à sua fórmula tão abominável quanto famosa: “Crede firmiter, et pecca fortiter, peccandum est quandium vivimus”, diz: “Uma prostituta será mais facilmente salva que um santo, porque o santo é impedido por suas obras de ter o desejo da graça”. Considera que “São Tomás não é senão um aborto teológico como tantos outros. É um poço de erros, um “pot-pourri” de mentiras e de heresias que aniquilam o Evangelho”; os santos “uma raça de porcos de Epicuro, bêbados, libertinos, cães que afundam seus pés no sangue”; os pregadores católicos “uma raça de insetos nojentos” (Barbier 14-15). Contra a Igreja a linguagem é simplesmente obscena. Sobre religião diz: “Embora nenhuma seja mais extravagante do que a religião cristã, creio em um só judeu, em Jesus Cristo, filho de Deus” (FB 189).
Mas é exatamente do Homem-Deus que Lutero diz blasfêmias tão abomináveis que não as podemos reproduzir (FB 169 e 186).

Segue aqui a parte que não foi reproduzida no artigo original.

Lutero afirma que crê em Cristo mas é a Ele que faz as seguintes acusações:
“Pensais sem dúvida que o beberrão Cristo, tendo bebido demais na ceia, aturdiu os discípulos com uma vã tagarelice?” (FB 169).
-“Cristo, diz Lutero, cometeu adultério pela primeira vez com a mulher da fonte, de que nos fala São João. Não se murmurava em torno dele: “Que fez, então, com ela?” Depois com Madalena, depois com a mulher adúltera que Ele absolveu tão levianamente. Assim, Cristo, tão piedoso, também teve de fornicar, antes de morrer” (Propos de Table 1472). Diz Funck Brentano: “Livres pensadores, ateus, a quem citamos a passagem, assombraram-se”.
Tendo sido censurado pelo Dr. Jones, seu amigo, por ter insultado Deus em seu salmo “Quae fremuerunt gentes”, Lutero respondeu:
-“Certamente, mas qual foi o profeta que não insultou Deus”? (Propos de Table 2505 B – FB 186).

O pai do comunismo

Estes são apenas alguns traços do caráter do ex-monge apóstata que procurou dilacerar a túnica inconsútil da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.
O veneno de suas doutrinas penetrou em tudo: política, economia, moral, filosofia, arte. A cultura decaiu, os costumes se corromperam, a Cristandade se dividiu. Depois, outros homens Iluminados por Deus, levaram mais longe ainda os princípios de Lutero: “O comunismo aparece com toda sua força e com um caráter prático associacionista na seita dos anabatistas, derivada dos princípios expostos por Lutero; de modo que se pode dizer que o protestantismo foi o pai do comunismo” (Espasa, Socialismo, 1123).
No seio da Igreja, o protestantismo tentou penetrar várias vezes. Primeiro com o Jansenismo, depois, condenado este, com o americanismo e o modernismo. E o progressismo de hoje, especialmente em seu aspecto teológico e litúrgico, está profundamente influenciado pelo protestantismo.
Em suma, os dois maiores erros de nossos dias, a seita progressista e sua irmã siamesa no campo temporal, a doutrina marxista, são as últimas fases do processo revolucionário que começou com Martinho Lutero.
Talvez assim o leitor compreenda o porquê de certos elogios ao incompreendido monge alemão do século XVI.
É que o semelhante agrada ao semelhante.


OBRAS CITADAS

(*) As letras indicam o autor; o número indica a página citada.
FB – Funck BRENTANO – “Martim Lutero” , Casa Editora Vechi, Rio de Janeiro, 3ª edição, 1968.
LF -    Pe. Leonel FRANCA, S.J. – “A Igreja, a Reforma e a Civilização”, Editora Agir, Rio de Janeiro, 7ª edição, 1958.
DTC -  “Dictionnaire de Theologie Catholique”, Librairie Paris, 1926, verbete “Lutero”.
Rohr -   Abbé ROHRBACHER – Histoire Universelle de L’Église Catholique”, Gaume Frères et J. Duprey, Editeurs, Paris, Tomo XII, 4ª edição, 1866.
Espasa -   “Enciclopédia Universal Ilustrada Espasa-Calpe”, Madri-Barcelona, verbetes “Lutero” e “Socialismo”.
Barbier -   Abbé Emmanuel BARBIER – “Histoire Populaire de L’Église”, Librairie P. Lethielleux, Editeur, Paris, III partie, 1922.