quarta-feira, 27 de julho de 2016

“O DRAMA DA MORAL CATÓLICA”. OUVIMOS A ADVERTÊNCIA DO CARDEAL RATZINGER?


Valter de Oliveira



Em 1985 foi publicado o livro “A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga. Nele, em entrevista a Vitorio Messori, o então prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, aborda a questão da crise da Igreja no mundo contemporâneo. Citamos aqui partes do capítulo VI, “O Drama da Moral”. Os destaques em negrito são nossos. Cremos que o artigo é de suma importância para entendermos o que está acontecendo hoje na Igreja (V.O.).



Cardeal Ratzinger
Cardeal Ratzinger: “A mentalidade atualmente dominante agride os fundamentos mesmos da moral da Igreja, que, como observava há pouco, se permanece fiel a si mesma corre o risco de parecer um anacrônico e inoportuno corpo estranho. Assim, para tentar ser “críveis” os teólogos morais do Ocidente acabam por deparar com uma alternativa: parece-lhes terem de escolher entre a divergência com a sociedade atual ou a divergência com o Magistério. Conforme o modo de enunciar a questão, é maior ou menor o número daqueles que preferem este último tipo de discordância e que, consequentemente, se põem à procura de teorias e sistemas que permitam meios termos entre catolicismos e as concepções correntes. (...) Essa diferença crescente entre Magistério e “novas” teologias morais provoca consequências incalculáveis” (...) (p. 61,62)

(...) Hoje, o âmbito da teologia moral tornou-se o ponto principal das tensões entre Magistério e teólogos, especialmente porque nele as consequências tornam-se imediatamente visíveis. Poderia citar algumas tendências: algumas vezes são justificadas as relações pré-matrimoniais, pelo menos em certas condições; a masturbação é vista como um fenômeno normal no crescimento dos adolescentes; a admissão dos divorciados recasados aos sacramentos é continuamente reivindicada (1); o feminismo, mesmo o radical, parece ganhar terreno a olhos vistos na Igreja, especialmente em algumas Ordens religiosas femininas (2) (...). Até mesmo com relação ao problema do homossexualismo existem tentativas de justificação: aconteceu até que bispos, por insuficiente formação ou por um senso de culpa dos católicos para uma “minoria oprimida”, puseram a Igreja à disposição dos gays para as suas manifestações.  Há ainda o caso da Humanae Vitae, a encíclica de Paulo VI que reafirma o “não” às contracepções e que não foi compreendida, pior ainda, foi mais ou menos abertamente rejeitada por vastos setores eclesiais” (p.62).

Vittorio Messori
“Depois, diz Messori, o cardeal explica como o desenvolvimento de certa teologia moral foi gradualmente minando os “argumentos fundamentais da teologia fiel ao Magistério”. Ele explica como, a partir dos anos 30 e 40 “alguns teólogos moralistas católicos, partindo do ponto de vista da filosofia personalista, começaram a criticar a unilateralidade da orientação da moral sexual católica com relação à procriação. Eles chamavam a atenção, sobretudo, para o fato de a abordagem clássica do matrimônio no direito canônico, a partir dos seus fins, não exprimir plenamente o fenômeno propriamente humano” (63)

“Esses teólogos personalistas – é dito logo depois, influenciaram o Concílio que “acolheu e confirmou os melhores aspectos dessas reflexões. Mas justamente então começou a se manifestar uma outra linha de desenvolvimento. Enquanto as reflexões do Concílio se baseavam na unidade de “pessoa” e “natureza” no homem, passou-se a entender “personalismo” como contraposto a “naturalismo”, isto é, como se a pessoa humana e suas exigências pudessem entrar em conflito com a natureza. Dessa forma, um personalismo exagerado levou teólogos a negar a ordenação interna, a linguagem da natureza (que é aliás, por si mesma moral, como afirma o constante ensinamento católico) deixando à sexualidade, também conjugal, como único ponto de referência a vontade da pessoa”. (63).

(...) “Imediatamente após o Concílio, começou-se a discutir se existiam normas morais especificamente cristãs. Alguns chegaram a concluir que todas as normas podem ser encontradas também fora da ética cristã e que, de fato, a maior parte das normas cristãs foi tirada de outras culturas, em particular da antiga filosofia clássica, especialmente a estoica. Desse falso ponto de partida chegou-se inevitavelmente à ideia de que a moral deve ser constituída unicamente à base da razão e que essa autonomia da razão é válida também para os crentes. Não mais Magistério, portanto, não mais o Deus da Revelação com os seus mandamentos. Com efeito, existem hoje moralistas “católicos” que afirmam ser o decálogo, sobre o qual a Igreja construiu sua moral objetiva, um mero “produto cultural” (3) ligado ao Oriente Médio semita. Portanto, uma regra relativa, dependente de uma antropologia e de uma história que não são mais as nossas. Volta aqui, pois, a negação da unidade da Escritura, reaparecendo a antiga heresia que declarava o Antigo Testamento (lugar da “Lei”) superado e rejeitado pelo Novo (reino da “Graça”). Mas, para o católico, a Bíblia é um todo unitário, as Bem-aventuranças de Jesus não anulam o decálogo entregue por Deus a Moisés e, através dele, aos homens de todos os tempos. Pelo contrário, segundo estes novos moralistas,  nós , “homens já adultos e libertados”, devemos procurar sozinhos outras normas de comportamento”.

“Uma busca, pergunto eu (Messori), a ser feita apenas com a razão? (64)

“Exatamente, como tinha começado a dizer. Sabe-se, no entanto, que para a moral católica autêntica, existem ações que nenhum motivo poderá jamais justificar, contendo em si mesmas uma recusa do Deus Criador e, por conseguinte, uma negociação do bem autêntico do homem, sua criatura. Para o Magistério, existem sempre pontos firmes, balizadores, que não podem ser suprimidos nem ignorados sem quebrar o liame que a filosofia cristã vê entre o Ser e o Bem. Proclamando, pelo contrário, a autonomia da razão humana sozinha, separados do decálogo, foi preciso procurar novos pontos firmes: onde agarrar-se, como justificar os deveres morais, se estes não têm mais raízes na Revelação Divina, nos Mandamentos do Criador?” (p.64)

- “E então?”. (pergunta Messori)

“E então se chegou à chamada “moral dos fins” ou, como se prefere chamar nos Estados Unidos, onde ela foi elaborada e difundida, à “moral das consequências”, o “consequencialismo”, nada é em si mesmo bom ou mau, a bondade do ato depende unicamente do seu fim e das suas consequências previsíveis e calculáveis.”(p.65).


Passaram-se 31 anos. Quem acompanha a história da Igreja sabe que, apesar de admoestações como essa e muitas outras, apesar dos documentos promulgados pelos papas S. João Paulo II e Bento XVI, a influência dessa moral nefasta foi crescente no clero e mesmo no episcopado. Basta ver que no sínodo de 2014 praticamente 60% dos bispos ali presentes defenderam as propostas aqui criticadas pelo cardeal.


Notas:


1.      Há muito essa proposta é defendida pelas conferências episcopais da Alemanha e da França. No Sínodo de 2014 seu principal advogado foi o cardeal Kasper.
2.      Exemplo disso vemos em grupo de freiras americanas pertencentes à Conferência de Liderança de Mulheres Religiosas (LCWR em inglês).  As religiosas membros da LCWR - que conta com 1.500 delegadas para representar 57.000 freiras, cerca de 80% das religiosas dos Estados Unidos - defendem a ordenação de mulheres sacerdotisas e evitam condenar o uso da pílula, a eutanásia e a união de casais do mesmo sexo.

É interessante notar que as freiras são bem vistas por seu intenso trabalho social...




3.      Ou seja, exatamente como afirmam os teóricos da ideologia de gênero  que afirmam que toda a moral tida por objetiva na sociedade ocidental é uma mera construção histórica e, portanto, sem valor em nossos dias (V.0.).






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