Valter de Oliveira
Em 1985
foi publicado o livro “A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga. Nele,
em entrevista a Vitorio Messori, o então prefeito da Sagrada Congregação para a
Doutrina da Fé, aborda a questão da crise da Igreja no mundo contemporâneo.
Citamos aqui partes do capítulo VI, “O Drama da Moral”. Os destaques em negrito
são nossos. Cremos que o artigo é de suma importância para entendermos o que
está acontecendo hoje na Igreja (V.O.).
Cardeal Ratzinger |
Cardeal
Ratzinger: “A mentalidade
atualmente dominante agride os fundamentos mesmos da moral da Igreja, que, como
observava há pouco, se permanece fiel a si mesma corre o risco de parecer um
anacrônico e inoportuno corpo estranho. Assim, para tentar ser “críveis” os
teólogos morais do Ocidente acabam por deparar com uma alternativa: parece-lhes
terem de escolher entre a divergência com a sociedade atual ou a divergência
com o Magistério. Conforme o modo de enunciar a questão, é maior ou menor o
número daqueles que preferem este último tipo de discordância e que,
consequentemente, se põem à procura de teorias e sistemas que permitam meios
termos entre catolicismos e as concepções correntes. (...) Essa diferença
crescente entre Magistério e “novas” teologias morais provoca consequências
incalculáveis” (...) (p. 61,62)
(...)
Hoje, o âmbito da teologia moral tornou-se o ponto principal das tensões entre
Magistério e teólogos, especialmente porque nele as consequências tornam-se
imediatamente visíveis. Poderia citar algumas tendências: algumas vezes são
justificadas as relações pré-matrimoniais, pelo menos em certas condições; a
masturbação é vista como um fenômeno normal no crescimento dos adolescentes; a admissão dos divorciados recasados aos
sacramentos é continuamente reivindicada (1); o feminismo, mesmo o radical,
parece ganhar terreno a olhos vistos na Igreja, especialmente em algumas Ordens
religiosas femininas (2) (...). Até
mesmo com relação ao problema do homossexualismo existem tentativas de
justificação: aconteceu até que bispos, por insuficiente formação ou por um
senso de culpa dos católicos para uma “minoria oprimida”, puseram a Igreja à
disposição dos gays para as suas manifestações. Há ainda o caso da Humanae Vitae, a encíclica
de Paulo VI que reafirma o “não” às contracepções e que não foi compreendida,
pior ainda, foi mais ou menos
abertamente rejeitada por vastos setores eclesiais” (p.62).
Vittorio Messori |
“Depois, diz Messori, o
cardeal explica como o desenvolvimento de certa teologia moral foi gradualmente
minando os “argumentos fundamentais da
teologia fiel ao Magistério”. Ele explica como, a partir dos anos 30 e 40 “alguns teólogos moralistas católicos,
partindo do ponto de vista da filosofia personalista, começaram a criticar a
unilateralidade da orientação da moral sexual católica com relação à
procriação. Eles chamavam a atenção, sobretudo, para o fato de a abordagem
clássica do matrimônio no direito canônico, a partir dos seus fins, não
exprimir plenamente o fenômeno propriamente humano” (63)
“Esses teólogos
personalistas – é dito logo depois, influenciaram o Concílio que “acolheu e confirmou os melhores aspectos
dessas reflexões. Mas justamente então
começou a se manifestar uma outra linha de desenvolvimento. Enquanto as
reflexões do Concílio se baseavam na unidade de “pessoa” e “natureza” no homem,
passou-se a entender “personalismo” como contraposto a “naturalismo”, isto é,
como se a pessoa humana e suas exigências pudessem entrar em conflito com a
natureza. Dessa forma, um personalismo exagerado levou teólogos a negar a
ordenação interna, a linguagem da natureza (que é aliás, por si mesma moral,
como afirma o constante ensinamento católico) deixando à sexualidade, também conjugal, como único ponto de referência
a vontade da pessoa”. (63).
(...)
“Imediatamente após o Concílio, começou-se a discutir se existiam normas morais
especificamente cristãs. Alguns chegaram a concluir que todas as normas podem
ser encontradas também fora da ética cristã e que, de fato, a maior parte das
normas cristãs foi tirada de outras culturas, em particular da antiga filosofia
clássica, especialmente a estoica. Desse falso ponto de partida chegou-se
inevitavelmente à ideia de que a moral deve ser constituída unicamente à base
da razão e que essa autonomia da razão é válida também para os crentes. Não
mais Magistério, portanto, não mais o Deus da Revelação com os seus
mandamentos. Com efeito, existem hoje
moralistas “católicos” que afirmam ser o decálogo, sobre o qual a Igreja
construiu sua moral objetiva, um mero “produto cultural” (3) ligado ao
Oriente Médio semita. Portanto, uma regra relativa, dependente de uma
antropologia e de uma história que não são mais as nossas. Volta aqui, pois, a
negação da unidade da Escritura, reaparecendo a antiga heresia que declarava o
Antigo Testamento (lugar da “Lei”) superado e rejeitado pelo Novo (reino da
“Graça”). Mas, para o católico, a Bíblia é um todo unitário, as
Bem-aventuranças de Jesus não anulam o decálogo entregue por Deus a Moisés e,
através dele, aos homens de todos os tempos. Pelo contrário, segundo estes
novos moralistas, nós , “homens já
adultos e libertados”, devemos procurar sozinhos outras normas de
comportamento”.
“Uma busca, pergunto eu
(Messori), a ser feita apenas com a razão? (64)
“Exatamente,
como tinha começado a dizer. Sabe-se, no entanto, que para a moral católica
autêntica, existem ações que nenhum motivo poderá jamais justificar, contendo
em si mesmas uma recusa do Deus Criador e, por conseguinte, uma negociação do
bem autêntico do homem, sua criatura. Para o Magistério, existem sempre pontos
firmes, balizadores, que não podem ser suprimidos nem ignorados sem quebrar o
liame que a filosofia cristã vê entre o Ser e o Bem. Proclamando, pelo
contrário, a autonomia da razão humana sozinha, separados do decálogo, foi
preciso procurar novos pontos firmes: onde agarrar-se, como justificar os
deveres morais, se estes não têm mais raízes na Revelação Divina, nos Mandamentos
do Criador?” (p.64)
- “E então?”. (pergunta
Messori)
“E
então se chegou à chamada “moral dos fins” ou, como se prefere chamar nos
Estados Unidos, onde ela foi elaborada e difundida, à “moral das
consequências”, o “consequencialismo”, nada é em si mesmo bom ou mau, a bondade
do ato depende unicamente do seu fim e das suas consequências previsíveis e calculáveis.”(p.65).
Passaram-se 31
anos. Quem acompanha a história da Igreja sabe que, apesar de admoestações como
essa e muitas outras, apesar dos documentos promulgados pelos papas S. João
Paulo II e Bento XVI, a influência dessa moral nefasta foi crescente no clero e
mesmo no episcopado. Basta ver que no sínodo de 2014 praticamente 60% dos
bispos ali presentes defenderam as propostas aqui criticadas pelo cardeal.
Notas:
1. Há
muito essa proposta é defendida pelas conferências episcopais da Alemanha e da
França. No Sínodo de 2014 seu principal advogado foi o cardeal Kasper.
2. Exemplo disso vemos
em grupo de freiras americanas pertencentes à Conferência de Liderança de
Mulheres Religiosas (LCWR em inglês). As religiosas membros da LCWR - que conta com 1.500
delegadas para representar 57.000 freiras, cerca de 80% das religiosas dos
Estados Unidos - defendem a ordenação de mulheres sacerdotisas e evitam
condenar o uso da pílula, a eutanásia e a união de casais do mesmo sexo.
É interessante notar
que as freiras são bem vistas por seu intenso trabalho social...
3. Ou
seja, exatamente como afirmam os
teóricos da ideologia de gênero que afirmam
que toda a moral tida por objetiva na sociedade ocidental é uma mera construção
histórica e, portanto, sem valor em nossos dias (V.0.).
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