Valter de Oliveira
Há pessoas que facilmente esquecem o mal que lhes fizeram. Outras, pelo contrário, não esquecem. Algumas até dizem que perdoam, mas não esquecem. Fala-se que há problemas que herdamos da infância. Ou que nosso temperamento influi. Acredito. De qualquer modo, não é desculpa. Todos podemos educar o temperamento. Pode ser difícil. Nunca é impossível.
Outro dia, lendo um livro de espiritualidade de John D. Nugent (1) encontrei suas considerações sobre o assunto. Ele fala de "um verme (...) que nos costuma roer por dentro e roubar-nos como nenhum outro a paz do espírito: o dos ressentimentos" (...) E continua:
"A palavra ressentimento significa "voltar a sentir".
Trata-se de uma espécie de fita de vídeo particular que guardamos na nossa cabeça e que passamos e voltamos a passar até sabermos de cor e salteado cada linha e cada cena. Se o vídeo registrasse dias felizes passados ao sol, é bem verdade que não haveria um modo melhor de usar a memória. Via de regra, porém, não se trata desse tipo de filmes.O vídeo a que se costuma chamar ressentimento é justamente o que registra as cenas em que fomos machucados, humilhados, confundidos ou tratados de maneira injusta por alguma pessoa ou situação do passado. Costuma ser tecnicamente de primeira qualidade: cada cena e cada palavra têm o brilho de um diamante, a trilha sonora é quadrafônica, e a dor e a humilhação que o incidente nos causou voltam uma e outra vez com toda a força. Pode ter sido filmado ao ar livre ou no estúdio (ou seja, os nossos ressentimentos podem ser reais ou imaginários), mas pouco importa. Seja como for, machuca-nos profundamente, suscita profunda ira no nosso íntimo e leva-nos a jurar vingança: mesmo que levemos um milhão de anos, chegará o momento de ajustarmos todas as contas de de acertarmos todas as dívidas...(2)".
Nugent pergunta: Como superar o ressentimento?
Poderíamos dizer que nossas más paixões devem ser combatidas com racionalidade. Acredito que possa ajudar. Entretanto ele diz:
"Não é possível superar os ressentimentos mediante o raciocínio; aliás, nós mesmos sabemos muito bem que isso não passaria de um exercício sem sentido. As pessoas de quem juramos vingar-nos estão polidamente cuidando das suas próprias vidas, sem a menor consciência de se encontrarem incluídas na nossa "lista negra", e o mais provável é que não estejam sequer pensando em nós. E nós, pobres mortais tolos, dedicamo-nos a conceder-lhes alojamento gratuito nas nossas cabeças, a dar-lhes a oportunidade de nos ferirem uma e outra vez, e ainda por cima pagamos a filmagem... Sabemos perfeitamente que não alcançaremos a paz de espírito enquanto não nos livrarmos da nossa coleção de home vídeos. Mas como? Quem quererá comprá-la?"
Mas, por que, só a racionalidade não resolve? poderíamos perguntar.
O autor responde:
"Mesmo tendo encaixado todas as razões certas no lugar certo, podemos perfeitamente fazer a coisa de maneira errada. Podemos, por exemplo, decidir friamente "deixar tudo isso para trás", desligar o televisor e fingir que nada aconteceu. Mas a dor emocional não se deixa prender assim: tem necessidade de exteriorizar-se. Se tentarmos emparedá-la, começará a arder e acabará por explodir; há mesmo alguns psiquiatras que afirmam que a depressão não é mais do que uma ira dirigida para dentro por não ter sido expressa no momento em que devia. Ou então podemos sentir-nos magoados, mas decidir imediatamente esquecer , e depois de alguns dias descobrir um fantasma inquieto a ronda pela nossa cabeça sem que saibamos o que é.
Qual a solução?
Vejamos hoje o primeiro ponto. Está ligado a uma sadia espiritualidade.
"A verdadeira solução é dirigirmo-nos rapidamente ao conselheiro espiritual ou confidente (3) que tenhamos escolhido para contar-lhe o que aconteceu. Não deixamos nada de lado; relatamos o incidente narrando o que sentimos na ocasião e o que sentimos agora. Damos expressão às nossas emoções, à raiva, à vergonha e à humilhação que nos dominaram. A objetividade da pessoa que nos ouve - e a nossa própria humildade, ao revelarmos a nossa dor e a nossa fraqueza - extraem quase todo o veneno aos acontecimentos. Desta forma, ao invés de permanecermos sentados e de tentarmos resolver o assunto por nossa própria conta, tomamos a decisão de agir, o que por si só trará consigo a sua recompensa. E assim faremos a experiência de que um sem-número de coisas sobre as quais nos parecia difícil falar se tornam triviais quando conseguimos exteriorizá-las"
Os outros pontos veremos no próximo post. Amanhã ou depois. De momento já temos bons pontos para refletirmos.
Notas: 1. John D. Nugent. "Nervos, Preocupações e Depressão". trad. Henrique Elfes. São Paulo: Quadrante, 1992. p. 88-90.
2. O livro foi escrito há 30 anos. Imagine o que ele diria dos ressentimentos da geração mi-mi-mi que fica melindrada por qualquer coisa, que exagera brutalmente tudo o que lhe acontece e que adora cultivar a mágoa no pântano da internet...
3. É preciso saber escolher o diretor espiritual e, principalmente, o confidente. Temos que saber escolher pessoas criteriosas, prudentes, discretas, que realmente possam nos ajudar. Bem sabemos que, infelizmente, há quem tenha como confidentes pessoas que também se afogam com seus problemas.