Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada
Se se permite, tão facilmente e totalmente grátis, a mudança de gênero, por que não também a de espécie?
Quem viveu conscientemente o
25 de Abril, talvez ainda conserve, entre outras recordações, a lembrança de
uma canção revolucionária em que, a páginas tantas, se badalava: "Uma
gaivota, voava, voava, asas de vento, coração de mar. Como ela, somos livres,
somos livres de voar".
Como nunca mais ouvi aquela
melodiosa voz, temi que, embalada por um tão sugestivo texto, a dita
cançonetista tivesse mesmo voado para parte incerta. Ou que, tendo desafiado as
leis da gravidade, a experiência lhe tivesse sido fatal. Felizmente nenhuma
destas hipóteses se confirmou, pelo que é de supor que ainda esteja disponível
para ser de novo a voz do PREC, ou seja, do processo revolucionário em curso. A
sua histórica balada é, com efeito, um magnífico hino à nova e subversiva
política da identidade de gênero em que o anterior Governo, à falta de mais
urgente e necessária reforma social, tão entusiasticamente se empenhou, depois
de ter empenhado, com indiscutível êxito, o país.
Entende-se modernamente que
a identidade pessoal não deve ser aferida por circunstâncias objetivas, como
eram antigamente o sexo, a idade, a altura e o peso, mas sim por um ato
libérrimo da vontade de cada qual. Assim, se um macho quer ser oficialmente
fêmea, o Estado obedece ao capricho do cidadão e falsifica, a seu bel-prazer, o
respectivo registo de identidade. Portanto, pela mesma razão, se uma
septuagenária, de um metro de estatura e pesando cinco arrobas, quiser ser
oficialmente uma menina de vinte anos, de um metro e setenta e quarenta quilos,
também deveria poder sê-lo, se de fato se sente tão jovem, alta e leve quanto o
dito sujeito se acha feminino. Ou será que o faz-de-conta é válido para o sexo,
mas já não para a idade, a altura e o peso?
Mas, se se permite, tão
facilmente e totalmente grátis, a mudança de gênero, por que não também a de
espécie?! Se o sexo já não é algo objetivo e predeterminado geneticamente, por
que o há de ser a natureza? Se a mulher pode "virar" homem e
vice-versa, por uma simples declaração de vontade, por que não pode ser alguém,
como Fernão Capelo, gaivota?!
Quem não gostaria de obter,
oficialmente, o estatuto jurídico de ave protegida?! Não passarinho, que releva
alguma inferioridade, nem passarão, que sugere algum governante ou
administrador de empresa pública, mas pássaro, como a gaivota da canção, para
ser livre, livre de voar! Para além da isenção de impostos e a inimputabilidade
penal, a condição aviária tem grandes vantagens também ao nível da viação que,
neste caso, passa a ser, muito propriamente, aviação.
A estas e outras razões
gerais tenho a acrescentar uma gratificante experiência pessoal quase-aviária.
No ano passado, ao sofrer um acidente, tive que esperar pela ambulância, no
mesmo lugar, cerca de uma hora. Porém, quando na urgência do hospital me
colocaram uma pulseira colorida, fui logo objeto dos mais extremosos e
diligentes cuidados médicos. Enquanto ser humano, mereci pouca atenção, mas
assim que, graças à bendita pulseira, me confundiram com uma ave, beneficiei de
imediato da principesca proteção dispensada às espécies em vias de extinção.
Uma pessoa pode ser negligenciada e até impunemente morta antes de nascer, mas
um animal protegido não pode ser maltratado. Moral da história: humano nunca mais!
Ser ave é que é o negócio!
Um slogan revolucionário
exigia: 25 de Abril sempre! Não chegamos a tanto, mas, de certo modo, pode-se
dizer que agora, graças à famigerada igualdade de gênero, todos os dias são
dias de 1 de Abril, porque são dias de mentiras. Talvez não fosse
despropositado criar um dia anual da verdade, em que cada qual, mais por via de
exceção do que por regra, seja, muito originalmente, o que de fato é.
Gonçalo Portocarrero de
Almada in ‘Público’ do dia 29.08.2011
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