sábado, 8 de março de 2025

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E O DIREITO A MIGRAR

 

INTRODUÇÃO DO BLOG CLARAVALCISTER:


Muito é discutido atualmente sobre o tema da migração. Mais ainda com as duras medidas que Trump quer usar para combater os imigrantes que entraram ilegalmente nos EUA. Aliás, devido a estas, o Papa Francisco enviou carta aos bispos dos EUA voltando a defender os direitos dos imigrantes. A carta, reafirma o ensinamento constante da Igreja sobre o tema. Nos meios católicos teve repercussões positivas mas também produziu ressalvas. As razões serão abordadas na próxima semana no site claravalcister.  

Na verdade, o que ocorre, mesmo em meios católicos, é um conhecimento parcial ou distorcido da Doutrina Social da Igreja (DSI) sobre migração e direitos de imigrantes e governos. Por isso mesmo, tendo em vista conhecermos melhor o que a Igreja diz, fiz uma pesquisa procurando textos mais completos sobre o assunto. Encontrei-o há um ou dois meses. Antes que eu começasse a publicá-lo veio a carta do Papa. Devido a isso, publiquei primeiro no site claravalcister a carta do Papa junto com um artigo que explica o pensamento do vice-presidente dos EUA - JD.Vance - sobre imigração e Ordo Amoris (1).

Por razões didáticas decidi  continuar, no site, os desdobramentos do pronunciamento do Santo Padre. Aqui, no blog, vou postar diariamente o texto da DSI que encontrei. A parte doutrinária é, a meu ver, excelente. Ademais, é bem completada por análises pontuais sobre a realidade política. (2)  Ele faz  parte de um curso sobre doutrina social da Igreja. Claro está que, especialmente nas análises concretas há muito campo para divergências dado que são abordagens históricas, sociológicas e econômicas. Não há que ser dogmático nesses pontos. O que temos que fazer, sempre, é procurar a verdade  Mais ainda quando temos que levar em conta diferentes países e contextos históricos. 

Observem que o autor, ao mesmo tempo que explica a DSI analisa também os problemas da imigração nos EUA. Outro ponto interessante é que ele afirma que certos pontos dela precisam ser melhor aprofundados. Como podem ver no texto, ele indica alguns pontos. Aliás, o debate público sobre este e vários outros temas da DSI pode contribuir para evitarmos ou diminuirmos tais lacunas. Por isso mesmo muitos documentos da Igreja convidam os leigos a colaborar no aperfeiçoamento de sua doutrina e, também, em sua aplicação. 

Segue o texto.  

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O Direito a Migrar e o Bem Comum

Andrew M. Yuengert

Conteúdo da Unidade

Introdução

O direito a migrar
Três argumentos a favor do direito a migrar

O bem comum do país anfitrião – investigação económica
Efeitos culturais
Efeitos fiscais
Efeitos nos trabalhadores nativos

Imigrantes pobres e os “nossos” pobres
O Prémio do Local
Ganhadores e possíveis perdedores da imigração

Conclusão – equilibrando as obrigações para com os ganhadores e os possíveis perdedores da migração

Referências e outras leituras para esta secção

Encíclicas papais e outros documentos da Igreja referidos nesta secção

Questões para discussão

Notas de rodapé

Sobre o autor


Introdução

São três os princípios que definem a posição da Doutrina Social da Igreja relativamente à imigração (Yuengert, 2004):

· Existe o direito a migrar, tanto a emigrar como a imigrar (Pacem in terris[1], 21; Populorum progressio, 69; Laborem exercens, 23).

· O direito a migrar não é absoluto. Os países anfitriões podem regular os fluxos de migrantes quando os encargos da imigração ameaçam o bem comum da nação (WDM (World Day for Migrants), 1993; WDMR (World Day for Migrants and Refugee), 2011.

· O direito a migrar é especialmente importante para migrantes pobres e refugiados; as nações não devem restringir os seus direitos de forma leviana ou arbitrária (WDMR, 2013; Evangelii gaudium, 210).

O Papa Francisco não alterou estes três princípios da Doutrina Social da Igreja sobre a imigração. Em consonância com a sua visão apostólica, no entanto, começou pelo terceiro princípio. Os imigrantes pobres e os refugiados são frequentemente marginalizados e vulneráveis e devem vir em primeiro lugar, não em último, nos nossos corações (WDMR, 2019). A caridade fraternal equilibra o amor saudável de alguém pela sua terra natal e o amor universal pelos mais necessitados dentro e fora da sua terra natal (Fratelli Tutti, 142).

O atual impasse político sobre a imigração desafia a Igreja a ser mais especifica relativamente ao seu segundo princípio. A Lei sobre a Reforma e o Controle da Imigração de 1987 prometeu uma combinação entre uma amnistia a três milhões de imigrantes ilegais e uma aplicação renovada da lei. Cumpriu-se a anistia, mas não a aplicação da lei, o que criou o cenário para um complicado conflito político. Trinta anos mais tarde, depois de décadas de grandes fluxos de imigração legal e ilegal, a população imigrante nos EUA é de 42 milhões de pessoas – 13% da população dos EUA (Blau e Mackie 2017, p. 19). O número de imigrantes ilegais é de 11 milhões, cerca de quatro vezes mais do que em 1987.

Nas últimas três décadas, as posições contrastantes sobre a imigração extremaram-se. Os movimentos reformistas da imigração em 2007 e 2013 prometeram um “caminho para a cidadania” a par com novas iniciativas de execução da lei. Todos os esforços acabaram por cair aos pés da suspeita conservadora de que, mais uma vez, a aplicação da lei não se concretizaria e da intolerância crescente da esquerda em relação a quaisquer restrições à imigração de países pobres[2]. Donald Trump foi eleito em parte com base nesta promessa de aplicação da lei, tendo em conta o permanente caos nas fronteiras. O impasse na Europa é igualmente complicado, embora se centre mais intensamente em questões de identidade nacional e nos efeitos dos imigrantes muçulmanos e pobres em culturas seculares homogéneas.

EUA tem população pobre excessiva
Os conflitos sobre a imigração contribuíram para o crescimento do nacionalismo populista nos EUA e na Europa. Os apoiantes destes movimentos (apelidados de “somewheres” por Goodhart, 2017) identificam-se mais com o local e com aqueles que partilham a sua comunidade e nação. Suspeitam que as elites que os governam (os “anywheres” de acordo com Goodhart) negligenciam os seus interesses a favor de iniciativas globais. Os populistas tendem a ser pobres e da classe operária; e nos EUA existem evidências de que não foram bem-sucedidos nem dentro nem fora dos mercados. As suas preocupações políticas centram-se na imigração e no comércio, que consideram ser ameaças ao seu bem-estar.

Com a polarização das políticas da imigração, a investigação econômica sobre os efeitos da imigração cresceu. As Academias Nacionais das Ciências publicaram recentemente um sumário compreensivo da investigação recente (Blau e Mackie, 2017). As conclusões básicas não mudaram desde o último relatório das Academias Nacionais na década de 1990 (Smith e Edmonston, 1997). A imigração tem grandes efeitos benéficos para os próprios imigrantes e efeitos positivos líquidos para os nativos de forma agregada. Embora o efeito agregado nos nativos seja positivo, os efeitos são distribuídos de forma desigual. A imigração tem um efeito pequeno mas provavelmente negativo nos salários dos trabalhadores nativos com baixas qualificações e tem efeitos geralmente modestos nos orçamentos governamentais (ainda que os efeitos difiram bastante entre estados e localidades e entre os governos estaduais e o nacional)[3].

Duas linhas de investigação, uma que aborda os benefícios da imigração para os imigrantes e outra que aborda o seu custo para os trabalhadores nativos, colocam em evidência o dilema trazido pelo desafio populista em relação a uma política de imigração generosa e à Doutrina Social da Igreja. Em primeiro lugar, novos estudos sobre “efeitos de lugar” documentam de forma clara os enormes benefícios da migração para os imigrantes pobres. Os ganhos económicos da migração não se resumem a uma simples redistribuição de bens materiais, revelando uma expansão moralmente significativa da produtividade da mão-de-obra imigrante.

Uma segunda linha de investigação toma como adquiridos os relativamente modestos efeitos negativos da migração nos nativos pobres, mas questiona se esses custos, ainda que modestos, serão aceitáveis. As transferências governamentais não protegeram os nativos pobres e os da classe operária das disfunções que resultam dos declínios, mesmo que modestos, nas perspectivas de emprego. Os desafios populistas à imigração trazem à superfície uma questão crucial: como devemos ponderar os grandes benefícios económicos para os imigrantes tendo em consideração as perdas relativamente modestas, mas humanamente significativas, para os trabalhadores nativos e para as suas comunidades? Deverá o fato de os nativos pobres serem “os nossos pobres” ter algum impacto nas nossas deliberações sobre as políticas?

A Doutrina Social da Igreja oferece-nos poucos recursos para lidar com a tensão entre os direitos dos migrantes pobres e vulneráveis e os efeitos negativos modestos da imigração nos nativos pobres e vulneráveis. Na teoria, os Papas aceitam a necessidade de avaliar o direito a migrar tendo em consideração os potenciais danos para o bem comum do país anfitrião. Na prática, rapidamente consideram as preocupações sobre os efeitos da imigração nos rendimentos e na cultura dos nativos como “nacionalismo agressivo” (FT, 159). O chauvinismo ético explícito de muitos movimentos populistas merece a crítica da Igreja. No entanto, a Igreja tem que explicar melhor o que é uma preocupação apropriada com o bem comum nacional – e quais são os contornos de um “nacionalismo bem-ordenado”.

A discussão sobre a economia da imigração será organizada em torno dos três princípios da Doutrina Social da Igreja sobre a imigração. A primeira secção analisa o direito a migrar e as suas ambiguidades à luz do bem comum tanto do país de origem como do país anfitrião. A secção seguinte analisa a investigação recente sobre os efeitos da imigração nos países anfitriões. A terceira secção examina a ênfase que a Igreja coloca na solicitude para com os pobres, contrastando os enormes benefícios para os imigrantes pobres com a situação dos pobres da classe operária nativa.

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Continuação: O Direito a Migrar  

Tema que fica para o próximo post. 

Notas da Introdução. 

1. Veja os links: 

https://www.claravalcister.com/papa-francisco-2/carta-do-papa-francisco-aos-bispos-dos-eua-sobre-a-questao-da-imigracao-e-deportacoes-em-massa/

https://www.claravalcister.com/igreja/o-que-e-o-ordo-amoris/


2. A Doutrina Social da Igreja dá os princípios que defende que devam ser aplicados na vida social. Cabe ao poder temporal com o auxílio dos cidadãos saber aplicá-los na sociedade. Neste sentido não cabe à igreja dizer como isso deve ser aplicado. Fosse assim o poder temporal não passaria de uma mão estendida do espiritual.  

Nota do texto de Andrew M. Yuengert

[1] Neste capítulo, as encíclicas papais, as exortações apostólicas e documentos similares serão referenciadas com o título completo na primeira referência e depois citadas apenas pelas suas iniciais. As mensagens do Dia Mundial do Migrante (World Day for Migrants) ou do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado (World Day for Migrants and Refugees) serão descritas pelas iniciais WDM e WDMR seguidas pela data.

[2] Muitos na direita do mercado livre partilham efetivamente o objetivo das fronteiras abertas da esquerda (Powell, 2015).

[3] Uma nova ênfase em imigrantes com altas qualificações reflete uma tendência geral nas discussões sobre políticas de imigração no sentido de “melhorar” o influxo de imigrantes. Qualquer mudança nas políticas de imigração para uma imigração qualificada em vez de pouco qualificada cria um potencial conflito com o terceiro princípio da Doutrina Social da Igreja, segundo o qual os direitos dos imigrantes pobres são da maior importância.


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