domingo, 9 de março de 2025

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA (DSI), O DIREITO A MIGRAR E O BEM COMUM. 2.

 

Continuação do artigo de 08 de março.


O direito a migrar

Mais de 7,7 milhões de pessoas emigraram
 da Venezuela na última década
O direito a migrar na Doutrina Social da Igreja é estranhamente diferente de outros direitos. Não é um direito absoluto, como o direito à vida. Nem nós próprios nos podemos negar o direito à vida. O direito a migrar assemelha-se mais ao direito de contrair matrimónio, que não impõe uma obrigação de casar. Temos o direito a migrar, mesmo que não o exerçamos. Ainda assim, o direito a migrar é diferente do direito a casar num aspeto importante: a Doutrina Social da Igreja expressa um certo lamento quando alguém exerce o seu direito a migrar; e não existe lamento semelhante quando os casais se casam.

A ambiguidade tem origem na relação do migrante com dois bens comuns. Um imigrante internacional toca o chão de duas nações, cada uma com um bem comum. A Gaudium et spes define o bem comum como sendo “o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (26). O bem comum é a justificação e a finalidade comum do estado. É uma ferramenta necessária para o florescimento humano. As suas condições incluem o respeito pelos direitos da pessoa, da família, das comunidades religiosas e da sociedade civil.

As “condições sociais” do bem comum são produzidas de forma cooperativa pelos membros de um estado. Cada um deve participar no benefício e o projeto comum produz um certo companheirismo entre cidadãos. A partilha de um bem comum suscita um sentimento de sermos “devedores” da nossa comunidade e faz nascer um sentimento de solidariedade, “um compromisso firme e duradouro para com o bem comum” (Pontifício Conselho para a Justiça e Paz, 2004[4], 195). Devemos alguma coisa aos países nos quais vivemos e aos nossos concidadãos. Uma comunidade que persegue o seu próprio bem comum identifica-se como uma comunidade, como um “nós”. A nossa contribuição para o bem comum é crucial para o nosso florescimento.

Um imigrante encontra-se entre duas comunidades nacionais, cada uma com um bem comum. Ele deixa para trás uma noção para cujo bem comum deve contribuir (a menos que esteja a oprimir a sua dignidade) e entra num país cujo bem comum não partilha da mesma forma que os cidadãos e residentes do país de acolhimento.

A primeira fonte de ambivalência sobre o direito a migrar é o bem comum do país de origem. A Gaudium et spes afirma o direito a migrar, mas a afirmação é um aparte da discussão sobre o “direito e dever” de todos os cidadãos dos países em desenvolvimento para contribuir para o bem comum do seu país.

ser direito e dever seu (…) contribuir, na medida das próprias possibilidades, para o verdadeiro desenvolvimento da sua comunidade. Sobretudo nas regiões economicamente menos desenvolvidas (…) fazem correr grave risco ao bem comum todos aqueles que conservam improdutivas as suas riquezas ou, salvo o direito pessoal de emigração, privam a própria comunidade dos meios materiais ou espirituais de que necessita. (65)

Todos os cidadãos devem empregar os seus recursos para o bem comum dos seus países e os próprios países devem respeitar e salvaguardar este direito e dever. No entanto esta expetativa não permite restrições ao “direito pessoal de migração”[5].

O contexto do direito a migrar vem por defeito com a expetativa de que as pessoas irão participar e contribuir para o bem comum da sua terra natal. Quando os migrantes exercem o seu direito de partir, é frequentemente porque não são capazes de participar no bem comum ali. O direito a migrar existe quando existem “razões justas” para partir (PT, 25), quando os cidadãos são explorados ou impedidos por outra forma de contribuir “de acordo com as suas possibilidades” (GS, 65).

É evidente que existe alguma ambivalência sobre o direito a migrar: merece respeito e proteção urgente, mas o seu exercício generalizado é um sintoma de que alguma coisa correu mal no país de origem ou no sistema internacional[6]. João Paulo II nota que a migração é uma perda para o país de origem, cujos filhos e filhas nativos contribuem antes para o bem comum de algum outro país (LE, 23). O Papa Francisco lamenta o “desenraizamento cultural e religioso” dos emigrantes, bem como a “fragmentação (…) sentida pelas comunidades que deixam para trás” (FT, 38). Num mundo ideal, menos pessoas exerceriam o direito a migrar (FT, 129).

 

Três argumentos a favor do direito a migrar

A maior crise migratória da Venezuela
Yuengert (2004) apresenta três argumentos da Doutrina Social da Igreja que, juntos, apoiam o direito a migrar e enfatizam também a relação do migrante com o bem comum da sua terra natal. O primeiro é “o direito de uma família ao sustento” (p. 12), que está intimamente ligado com o destino universal dos bens e o direito à propriedade privada (MM, 45; PP, 69). Para florescer e se desenvolver, as famílias precisam de ter acesso a trabalho produtivo e aos bens deste mundo. A capacidade de atravessar fronteiras nacionais é uma garantia acrescida deste acesso.

O segundo argumento é “a prioridade da família sobre o estado” (Yuengert 2004, pp. 12-13). Esta prioridade é claramente estabelecida pela defesa da propriedade privada feita por Leão XIII (Rerum novarum, 13). Este princípio não proíbe quaisquer restrições à família em nome do bem comum. Pelo contrário, insiste que o estado e as suas leis existem em nome da família. Um objetivo do estado que exija o sacrifício das famílias e de outras sociedades de base não promove verdadeiramente o bem comum.

O segundo argumento destaca a natureza ambivalente do direito a migrar. Os potenciais imigrantes têm origem em comunidades e nações com bens comuns. Seria bom e justo que procurassem o seu florescimento nos seus próprios países e que a sua terra natal respeitasse e promovesse o seu florescimento como parte do bem comum. No entanto, muitas nações falham em providenciar as condições nas quais as famílias possam prosperar e as pessoas possam contribuir para o bem comum “de acordo com as suas possibilidades” (GS, 65). Os Papas atribuem a culpa desta situação a uma combinação de desequilíbrios e desigualdades no sistema internacional como um todo, com a má gestão e opressão nos países de origem. Em qualquer caso, o direito a migrar é uma salvaguarda que permite que os cidadãos “procurem melhores condições de vida noutro país” (LE, 23)[7].

O terceiro argumento a favor do direito a migrar, “o direito à iniciativa económica”, associa explicitamente a migração à atividade económica, ou à sua ausência no país de origem. João Paulo II descreve claramente o que está em causa na “iniciativa económica” da seguinte forma:

(…) trata-se de um direito importante, não só para os indivíduos singularmente, mas de igual modo para o bem comum. (…) a negação deste direito ou a sua limitação, em nome de uma pretensa «igualdade» de todos na sociedade, é algo que reduz, se é que não chega mesmo a destruir de facto, o espírito de iniciativa, isto é, a subjetividade criadora do cidadão. (…) Ora isto gera um sentimento de frustração ou desespero e predispõe para o desinteresse pela vida nacional, impelindo muitas pessoas para a emigração (…) (SRS, 15).

Esta passagem recorda-nos que um conceito abstrato como a “subjetividade criadora” está intimamente relacionado com o trabalho e com a atividade económica. Há uma relação próxima entre o direito a migrar e o direito à iniciativa económica. Embora os Papas deem especial atenção aos migrantes não-económicos que fogem à violência e à opressão, dois dos três argumentos acima enumerados enfatizam a provisão material e a expressão da ação humana através da atividade económica.

Os seres humanos são tanto materiais como espirituais: o exercício do arbítrio pessoal tem igualmente consequências espirituais e materiais. A supressão da iniciativa econômica tem, da mesma forma, consequências espirituais e materiais. A pobreza econômica da qual fogem os migrantes é frequentemente uma expressão de uma negação mais ampla da dignidade do migrante.

Notas do artigo:

[4] Este é o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, doravante designado por “Compêndio”.

[5] João Paulo II enumera os direitos universais em causa na migração, cada um estritamente ligado ao lugar e à comunidade. Por exemplo, “(…) o direito de ter o próprio país, de viver livremente no seu próprio país, de viver juntamente com a sua família (…) de preservar e desenvolver a sua própria herança étnica, cultural e linguística” (WDM, 2001, 3).

[6] João Paulo II associa o direito a migrar ao “direito a não emigrar” (WDMR, 2004, 3).

[7] Ver também WDMR, 2004 3, WDMR, 2014, WDMR, 2015.

Continua na próxima postagem

 


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