Continuação do artigo de 08 de março.
O direito a
migrar
O direito a migrar na Doutrina
Social da Igreja é estranhamente diferente de outros direitos. Não é um direito
absoluto, como o direito à vida. Nem nós próprios nos podemos negar o direito à
vida. O direito a migrar assemelha-se mais ao direito de contrair matrimónio,
que não impõe uma obrigação de casar. Temos o direito a migrar, mesmo que não o
exerçamos. Ainda assim, o direito a migrar é diferente do direito a casar num
aspeto importante: a Doutrina Social da Igreja expressa um certo lamento quando
alguém exerce o seu direito a migrar; e não existe lamento semelhante quando os
casais se casam.Mais de 7,7 milhões de pessoas emigraram
da Venezuela na última década
A ambiguidade tem origem na
relação do migrante com dois bens comuns. Um imigrante internacional toca o
chão de duas nações, cada uma com um bem comum. A Gaudium et spes define
o bem comum como sendo “o conjunto das condições da vida social que permitem,
tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria
perfeição” (26). O bem comum é a justificação e a finalidade comum do estado. É
uma ferramenta necessária para o florescimento humano. As suas condições
incluem o respeito pelos direitos da pessoa, da família, das comunidades
religiosas e da sociedade civil.
As “condições sociais” do bem
comum são produzidas de forma cooperativa pelos membros de um estado. Cada um
deve participar no benefício e o projeto comum produz um certo companheirismo
entre cidadãos. A partilha de um bem comum suscita um sentimento de sermos
“devedores” da nossa comunidade e faz nascer um sentimento de solidariedade,
“um compromisso firme e duradouro para com o bem comum” (Pontifício Conselho
para a Justiça e Paz, 2004[4], 195). Devemos alguma coisa aos países nos
quais vivemos e aos nossos concidadãos. Uma comunidade que persegue o seu
próprio bem comum identifica-se como uma comunidade, como um “nós”. A nossa
contribuição para o bem comum é crucial para o nosso florescimento.
Um imigrante encontra-se entre
duas comunidades nacionais, cada uma com um bem comum. Ele deixa para trás uma
noção para cujo bem comum deve contribuir (a menos que esteja a oprimir a sua
dignidade) e entra num país cujo bem comum não partilha da mesma forma que os
cidadãos e residentes do país de acolhimento.
A primeira fonte de ambivalência
sobre o direito a migrar é o bem comum do país de origem. A Gaudium et
spes afirma o direito a migrar, mas a afirmação é um aparte da
discussão sobre o “direito e dever” de todos os cidadãos dos países em
desenvolvimento para contribuir para o bem comum do seu país.
ser direito
e dever seu (…) contribuir, na medida das próprias possibilidades, para o
verdadeiro desenvolvimento da sua comunidade. Sobretudo nas regiões
economicamente menos desenvolvidas (…) fazem correr grave risco ao bem comum
todos aqueles que conservam improdutivas as suas riquezas ou, salvo o direito
pessoal de emigração, privam a própria comunidade dos meios materiais ou
espirituais de que necessita. (65)
Todos os cidadãos devem empregar
os seus recursos para o bem comum dos seus países e os próprios países devem
respeitar e salvaguardar este direito e dever. No entanto esta expetativa não
permite restrições ao “direito pessoal de migração”[5].
O contexto do direito a migrar
vem por defeito com a expetativa de que as pessoas irão participar e contribuir
para o bem comum da sua terra natal. Quando os migrantes exercem o seu direito
de partir, é frequentemente porque não são capazes de participar no bem comum
ali. O direito a migrar existe quando existem “razões justas” para partir (PT,
25), quando os cidadãos são explorados ou impedidos por outra forma de
contribuir “de acordo com as suas possibilidades” (GS, 65).
É evidente que existe alguma
ambivalência sobre o direito a migrar: merece respeito e proteção urgente, mas
o seu exercício generalizado é um sintoma de que alguma coisa correu mal no
país de origem ou no sistema internacional[6]. João Paulo II nota que a migração é uma
perda para o país de origem, cujos filhos e filhas nativos contribuem antes
para o bem comum de algum outro país (LE, 23). O Papa Francisco lamenta o
“desenraizamento cultural e religioso” dos emigrantes, bem como a “fragmentação
(…) sentida pelas comunidades que deixam para trás” (FT, 38). Num mundo ideal,
menos pessoas exerceriam o direito a migrar (FT, 129).
Três
argumentos a favor do direito a migrar
Yuengert (2004) apresenta três
argumentos da Doutrina Social da Igreja que, juntos, apoiam o direito a migrar
e enfatizam também a relação do migrante com o bem comum da sua terra natal. O
primeiro é “o direito de uma família ao sustento” (p. 12), que está intimamente
ligado com o destino universal dos bens e o direito à propriedade privada (MM,
45; PP, 69). Para florescer e se desenvolver, as famílias precisam de ter
acesso a trabalho produtivo e aos bens deste mundo. A capacidade de atravessar
fronteiras nacionais é uma garantia acrescida deste acesso.A maior crise migratória da Venezuela
O segundo argumento é “a
prioridade da família sobre o estado” (Yuengert 2004, pp. 12-13). Esta
prioridade é claramente estabelecida pela defesa da propriedade privada feita
por Leão XIII (Rerum novarum, 13). Este princípio não proíbe quaisquer
restrições à família em nome do bem comum. Pelo contrário, insiste que o estado
e as suas leis existem em nome da família. Um objetivo do
estado que exija o sacrifício das famílias e de outras sociedades de base não
promove verdadeiramente o bem comum.
O segundo
argumento destaca a natureza ambivalente do direito a migrar. Os
potenciais imigrantes têm origem em comunidades e nações com bens comuns. Seria
bom e justo que procurassem o seu florescimento nos seus próprios países e que
a sua terra natal respeitasse e promovesse o seu florescimento como parte do
bem comum. No entanto, muitas nações falham em providenciar as condições nas
quais as famílias possam prosperar e as pessoas possam contribuir para o bem
comum “de acordo com as suas possibilidades” (GS, 65). Os Papas atribuem a
culpa desta situação a uma combinação de desequilíbrios e desigualdades no
sistema internacional como um todo, com a má gestão e opressão nos países de
origem. Em qualquer caso, o direito a migrar é uma salvaguarda que permite que
os cidadãos “procurem melhores condições de vida noutro país” (LE, 23)[7].
O terceiro
argumento a favor do direito a migrar, “o direito à iniciativa económica”, associa
explicitamente a migração à atividade económica, ou à sua ausência no país de
origem. João Paulo II descreve claramente o que está em causa na “iniciativa
económica” da seguinte forma:
(…)
trata-se de um direito importante, não só para os indivíduos singularmente, mas
de igual modo para o bem comum. (…) a negação deste direito ou a sua limitação,
em nome de uma pretensa «igualdade» de todos na sociedade, é algo que reduz, se
é que não chega mesmo a destruir de facto, o espírito de iniciativa, isto é,
a subjetividade criadora do cidadão. (…) Ora isto gera um sentimento de
frustração ou desespero e predispõe para o desinteresse pela vida nacional,
impelindo muitas pessoas para a emigração (…) (SRS, 15).
Esta passagem recorda-nos que um
conceito abstrato como a “subjetividade criadora” está intimamente relacionado
com o trabalho e com a atividade económica. Há uma relação próxima entre o
direito a migrar e o direito à iniciativa económica. Embora os Papas deem
especial atenção aos migrantes não-económicos que fogem à violência e à
opressão, dois dos três argumentos acima enumerados enfatizam a provisão
material e a expressão da ação humana através da atividade económica.
Os seres humanos são tanto
materiais como espirituais: o exercício do arbítrio pessoal tem igualmente
consequências espirituais e materiais. A supressão da iniciativa econômica tem,
da mesma forma, consequências espirituais e materiais. A pobreza econômica da
qual fogem os migrantes é frequentemente uma expressão de uma negação mais
ampla da dignidade do migrante.
Notas do
artigo:
[4] Este é
o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, doravante designado por “Compêndio”.
[5] João
Paulo II enumera os direitos universais em causa na migração, cada um
estritamente ligado ao lugar e à comunidade. Por exemplo, “(…) o direito de ter
o próprio país, de viver livremente no seu próprio país, de viver juntamente
com a sua família (…) de preservar e desenvolver a sua própria herança étnica,
cultural e linguística” (WDM, 2001, 3).
[6] João
Paulo II associa o direito a migrar ao “direito a não emigrar” (WDMR, 2004, 3).
[7] Ver
também WDMR, 2004 3, WDMR, 2014, WDMR, 2015.
Continua na
próxima postagem
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