quinta-feira, 20 de março de 2025

DSI. O DIREITO A MIGRAR E O BEM COMUM - 4

 

Imigrantes pobres e os “nossos” pobres

Embora o direito a migrar não seja absoluto, a Doutrina Social da Igreja adverte as nações contra as restrições arbitrárias a este direito: os migrantes internacionais são geralmente pobres e mesmo aqueles que são mais ricos procuram frequentemente melhores condições e direitos que lhes são negados nos seus países de origem. O Papa Francisco nota que Jesus chama a Igreja a reconhecê-lo “nos mais pobres e mais abandonados; entre estes haverá certamente migrantes e refugiados que estão a tentar escapar a condições difíceis e a perigos de todo o tipo” (WDMR, 2015). A nossa atitude para com os migrantes pobres e os refugiados “não é apenas sobre migrantes (…) o progresso dos nossos povos (…) depende acima de tudo da nossa abertura para sermos tocados e movidos por aqueles que nos batem à porta” (WDM, 2019).

Ainda que as nações ocidentais olhem com crescente preferência para os imigrantes mais bem-educados e altamente qualificados, a Doutrina Social da Igreja incita-nos a manter os nossos olhos fixos nos pobres. Estudos confirmam que os benefícios econômicos para os migrantes pobres são inegavelmente grandes, com aumentos substanciais nos seus rendimentos apenas por atravessarem a fronteira. O fato de este benefício reverter para os imigrantes com efeitos relativamente pequenos no curto-prazo sobre os trabalhadores nativos (e efeitos ainda menores no longo-prazo) é um puzzle – um puzzle que talvez apenas os economistas consigam apreciar na sua totalidade. Explorando-o, podemos ver mais claramente o retorno humano da imigração: os grandes benefícios econômicos para os imigrantes pobres são um indicador e coincidem com os grandes benefícios não-económicos da imigração.

O Prêmio do Local

Sem surpresas, mais de um milhão de imigrantes entram nos EUA todos os anos e muitos mais gostariam também de entrar (Clemens 2011, p.83). Nós tomamos isto por garantido, mas talvez devêssemos refletir sobre este facto relevante. Numa economia global e dinâmica, na qual o capital, bens e serviços são todos suscetíveis de ser mobilizados através das fronteiras, as diferenças nos rendimentos do trabalho não deveriam ser tão persistentemente acentuadas. Os trabalhadores nos países pobres não deveriam ter de deixar a sua terra natal para aumentar significativamente os seus rendimentos. Os mercados podem chegar até eles: o investimento capital e a tecnologia são extremamente móveis e sensíveis às oportunidades; e o comércio livre de bens e serviços permite aos pobres maior acesso aos mercados mundiais do que em qualquer outro momento da história mundial. Isto levanta uma questão crucial: por que é que a oportunidade não chega até eles?

Consideremos as seguintes estatísticas de Kennan (2013)[14]:


·
Um trabalhador filipino, educado nas Filipinas e a trabalhar nos EUA, ganha quatro vezes mais do que um filipino com a mesma educação que permaneça nas Filipinas.

     · Um trabalhador mexicano, educado no México e a trabalhar nos EUA, ganha duas vezes e meia mais do que um mexicano com a mesma educação que permaneça no México.

Encontramos estas diferenças por todos os países que enviam imigrantes para a Europa e para os EUA: a mesma pessoa, com a mesma educação no país de origem, pode ganhar muito mais num país desenvolvido do que em casa.

As caraterísticas dos imigrantes relativamente àqueles que ficam em casa não conseguem explicar diferenças desta dimensão (Clemens 2011). A educação não explica esta diferença uma vez que tanto os emigrantes como aqueles que ficam são educados no país de origem, nem as barreiras ao comércio são suficientemente severas para a explicar. Talvez as diferenças na remuneração reflitam algo mais do que diferenças na produtividade. Talvez os trabalhadores mexicanos sejam igualmente produtivos no México e nos EUA, mas recebam simplesmente muito menos no México. Contudo, isto não é plausível porque o investimento capital e o comércio (ao contrário do trabalho) move-se com relativa facilidade entre fronteiras. Se os trabalhadores no México fossem tão produtivos como os trabalhadores mexicanos nos EUA mas recebessem muito menos, então a procura por trabalhadores mexicanos para trabalhar no México seria grande e com tendência para aumentar; os investimentos no México seriam mais rentáveis; e estes lucros mais elevados seriam tão persistentes como as diferenças salariais. Mas este não parece ser o caso. Os retornos ao capital são praticamente iguais entre os países (Caselli and Feyrer, 2007) e não há uma escassez constante de trabalhadores no mundo em desenvolvimento.

Há alguma coisa no país de origem que faz com que o mesmo trabalhador seja menos produtivo em casa do que no estrangeiro. O mesmo trabalhador filipino é quatro vezes mais produtivo nos EUA do que no país de origem. O mesmo trabalhador mexicano é duas vezes e meia mais produtivo nos EUA do que no México. Há alguma coisa nos países de origem que faz com que os trabalhadores sejam menos produtivos lá, mas que não reduz da mesma forma a produtividade marginal do investimento de capital nesses países. A explicação técnica para esta disparidade encontra-se no conceito de “produtividade acrescentada do trabalho” no mundo desenvolvido (Kennan 2013, p. L2). Clemens et al. (2008) chama a isto o “Prémio do Local” (Place Premium), embora do ponto de vista do país de origem sejam mais uma “Penalização do Local” sobre o trabalho.

O que explica esta “penalização”? Os culpados mais óbvios são as políticas económicas e as instituições dos países de origem que suprimem a produtividade do trabalho (Olson 1996; Clemens 2011). Nos países em desenvolvimento é difícil começar novas empresas e protegê-las da apropriação pelos poderosos e pelos que têm ligações políticas. A justiça e o estado de direito são aplicados de forma desigual. Em poucas palavras, os trabalhadores e os empreendedores não conseguem tirar o máximo partido das oportunidades que se apresentam. Os seus países de origem dão-lhes poucas oportunidades para exercerem a sua iniciativa económica e empregarem as suas competências[15].

Se um trabalhador se torna mais produtivo simplesmente porque se muda para os EUA ou Europa, então os benefícios económicos potenciais para a imigração são enormes – muito maiores que os benefícios do comércio livre, ou de mais educação ou do livre movimento de capitais (Clemens 2011)[16]. São trilhões de dólares de benefícios para os trabalhadores pobres que estão em causa.

O “prêmio do local” coloca o trabalho humano e o empreendimento humano no centro da política de imigração. Um trabalhador que imigra para os EUA recebe bem mais do que um aumento no rendimento: não é por acaso que recebe mais dinheiro. Salários mais elevados refletem uma maior produtividade, logo o trabalhador produz mais e contribui mais. No país de origem, o trabalhador não é roubado do seu salário, mas sim pago de acordo com a baixa produtividade. A produtividade pode ser tão baixa que os trabalhadores no seu país de origem podem estar a trabalhar em condições desumanas. Os trabalhadores são privados da sua produtividade e têm de emigrar para se aperceberem disso.

Para usar a linguagem da Doutrina Social da Igreja, ao migrar para países desenvolvidos os migrantes pobres não “têm” apenas mais rendimento: este “ter” reflete a sua capacidade para “ser” mais – mais produtivo, mais criativo, mais responsável por si próprio tanto dentro como fora da força de trabalho. Os seus salários baixos nos países de origem refletem uma falta de “ser” tanto como uma falta de “ter”. Na Laborem exercens, o Papa João Paulo II afirmou que “o trabalho humano (…) é a chave essencial para a questão social” (LE, 3). Através do trabalho, o homem realiza-se enquanto pessoa, desenvolve-se e contribui para a sua comunidade. O grande benefício do trabalho para a pessoa humana e para a comunidade humana reforça o “direito à iniciativa económica”, o terceiro argumento para o direito a migrar discutido anteriormente. A negação deste direito conduz muitos a “optar pela não participação na vida nacional” e a emigrar (LE, 15), o que gera uma pobreza que não é puramente económica:

E os «pobres» aparecem sob variados aspectos; (…) aparecem, em muitos casos, como um resultado da violação da dignidade do trabalho humano: e isso, quer porque as possibilidades do trabalho humano são limitadas — e há a chaga do desemprego — quer porque são depreciados o valor do mesmo trabalho e os direitos que dele derivam (…). (LE, 9) 

O “prêmio do local”, e a supressão da iniciativa econômica que ele reflete, coloca o retorno humano da imigração numa perspetiva muito clara. Muitos pensam nos benefícios da imigração para os imigrantes como uma espécie de redistribuição do rendimento mundial – com os países ricos a darem alguma da sua riqueza aos imigrantes. Mas a economia da imigração sugere que isto não é verdade. Em vez disso, o que está a acontecer é muito mais significativo do ponto de vista moral. O movimento dos imigrantes de países onde a sua iniciativa económica é suprimida para países onde podem ser mais produtivos é uma expansão de oportunidades, não uma redistribuição de rendimentos. O Papa Francisco exorta os países desenvolvidos a acolherem os migrantes e a garantirem que estes “têm o poder de realizar o seu potencial como seres humanos, em todas as dimensões que constituem a humanidade desejada pelo Criador” (WDMR, 2018). O enorme aumento nos rendimentos está intimamente ligado ao “empoderamento” dos trabalhadores imigrantes.


Observação: os destaques em itálico foram inseridos pelo claravalcister. 


Notas da parte 4


[14] Tabela 1, quarta e quinta colunas. Kennan retira as suas estimativas de Clemens et al. (2008).

[15] Existem evidências económicas abundantes neste ponto. Contudo, talvez mais convincente que os livros e os artigos de revistas académicas que têm sido escritos sobre o tema é esta Ted talk que narra a experiência pessoal de Magatte Wade e daqueles que ela tenta empregar no Senegal: https://www.ted.com/talks/magatte_wade_why_it_s_too_hard_to_start_a_business_in_africa_and_how_to_change_it

[16] Clemens (2011) estima que “a emigração de menos de 5% da população das regiões pobres traria ganhos globais superiores aos ganhos resultantes da eliminação total de todas as barreiras ao comércio de mercadorias e de todas as barreiras aos fluxos de capital” (p. 84). Ver Keennan (2013, 2017) para efeitos estimados igualmente grandes.


quinta-feira, 13 de março de 2025

DSI: O DIREITO A MIGRAR E O BEM COMUM - 3

 


Introdução do blog claravalcister


Como vimos na parte 1 desta série de artigos a respeito da questão da migração são três os princípios que definem a doutrina social católica sobre o assunto. 

Nos dois primeiros artigos aqui publicados tivemos a explicação do direito a migrar e a imigrar. 

Hoje começamos a postar o segundo princípio. O direito a imigrar não é absoluto. Os países anfitriões podem regular os fluxos de migrantes.  Ponto importante da DSI muito pouco conhecido. Deixar de entender sua importância faz com que a balança penda indevidamente para o terceiro ponto da doutrina que afirma que os direitos dos migrantes não podem ser restritos de forma leviana ou abusiva. 

Mas, isso fica para oúltimo artigo. Hoje vamos ver como a DSI explica os deveres e os direitos de Estados soberanos sobre este grande problema.

Explicação que é dada baseada não só em princípios mas também levando em conta fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, históricos, o que a torna um tanto árida. Paciência. Ela é indispensável para que possamos entender toda a complexidade deste e de outros problemas contemporâneos. Só assim seremos capazes de demonstrar a solidez da Doutrina Social da Igreja. Ela não é só um conjunto de ensinamentos teóricos, deduzidos de premissas verdadeiras. Ela tem que ser adequadamente aplicada à realidade. .  

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O bem comum do país anfitrião – investigação econômica


Na Doutrina Social da Igreja, o direito a migrar não é absoluto. Ondas de migração demasiado grandes podem afetar o bem comum dos países anfitriões. A Igreja reconhece este peso e enquadra a sua afirmação do direito a migrar em conformidade com ele. O Papa João Paulo II reconhece que a migração indiscriminada pode prejudicar o país anfitrião e por isso deve “ser regulada” (WDM, 2001, 3) e que os países anfitriões podem temer uma “perda de identidade” durante um grande influxo de migrantes (WDM, 1998). O Papa Bento XVI afirma que “os estados têm o direito a regular os fluxos migratórios e a defender as suas próprias fronteiras, garantindo sempre o devido respeito pela dignidade de toda e cada pessoa humana” (WDMR, 2011).

O bem comum de uma nação é prosseguido a nível nacional; os cidadãos contribuem para ele em todos os níveis e supõe-se  que participem nos seus benefícios. As principais formas através das quais a imigração pode prejudicar o bem comum incluem os seus efeitos na cultura ou nos encargos económicos desiguais que impõe sobre alguns grupos da população nativa. Estudos recentes abordam cada um destes aspetos da imigração.

Efeitos culturais

Os argumentos que defendem que a imigração é uma ameaça para a cultura nacional são mais fortes em países com fortes identidades culturais. Estes argumentos têm menos força nos EUA. Os Estados Unidos têm sido desde sempre um projeto social em curso, “concebido em liberdade e orientado pela premissa de que todos os homens são criados iguais”, tal como Lincoln descrevia[8]. A cultura dos EUA tem sido moldada no passado pelos princípios nas quais foi fundada: igualdade perante a lei, desejos de autogoverno e os hábitos associativos necessários para uma sociedade civil vibrante. Os imigrantes de culturas muito diferentes assimilaram-se a esta cultura, mesmo aqueles sobre quem os nativos tinham profundas suspeitas – os alemães no século XVIII, os irlandeses no século XIX, os Europeus de leste no século XX; e os latino-americanos e os asiáticos no século XXI.

Existe atualmente um aceso debate no EUA sobre que tipo de nação quer o país ser. Cada aspecto da história dos Estados Unidos, as suas instituições e sua cultura estão em cima da mesa e sob ataque. Todas as questões políticas são arrastadas para este debate e os imigrantes acabam por se ver recrutados para um dos lados. Até o atual impasse sobre a imigração ilegal é verdadeiramente um conflito entre nativos sobre o estado de direito e as políticas de migração. Não é uma discussão entre imigrantes e nativos[9].

Perante as profundas discordâncias sobre aquilo que deve ser a cultura cívica americana, é injusto para os imigrantes esperar que atinjam um alvo cultural contestado. É mais razoável avaliar a sua assimilação à cultura dos EUA por meio de critérios menos disputados. São criminosos? Aprendem inglês? Trabalham arduamente? Em todos estes critérios os imigrantes são bons vizinhos que eventualmente encontram o seu lugar na sociedade dos EUA. Butcher e Piehl (2007) demonstram que a taxa de institucionalização (encarceramento) dos imigrantes corresponde a um décimo da dos nativos da mesma idade e com a mesma educação. As ondas mais recentes de imigração aprendem inglês mais lentamente que as anteriores, mas o seu progresso continua a ser constante e os seus filhos falam inglês (Blau e Mackie, 2017, pp. 114-119). Por fim, tanto os rendimentos dos imigrantes como o emprego aumentam relativamente aos dos trabalhadores nativos, por quanto mais tempo eles viverem nos EUA (Blau e Mackie 2017, pp. 98-114).

Efeitos fiscais

O efeito da imigração nas finanças públicas é modesto no seu agregado, mas distribuído de forma desigual entre o nível federal e os níveis estadual e local. Blau e Mackie (2017) estimam os efeitos passados da imigração e preveem os efeitos futuros aos níveis federal, estadual e local. Sem surpresas, os impactos previstos dependem dos pressupostos[10]. Contudo obtém-se uma imagem clara. Ao nível federal, os imigrantes constituem um benefício orçamental líquido, especialmente quando se consideram as contribuições dos imigrantes de segunda e terceira gerações (Blau e Mackie, 2017, pp. 436-438). Ao nível estadual e local, os imigrantes são um encargo líquido, apesar de os efeitos variarem substancialmente entre estados e gerações de imigrantes (Blau e Mackie, 2017, pp. 522-531).

Os efeitos fiscais estimados são agravados pelo fato de, sob a atual trajetória insustentável da dívida em todos os níveis de governo, até um nativo mediano pode ser um encargo orçamental líquido porque recebe mais em benefícios e serviços do que contribui em impostos. Qualquer pessoa adicional é simplesmente um acréscimo ao problema. Contudo, em qualquer cenário onde os EUA regressem à sustentabilidade orçamental, os imigrantes e os seus descendentes tornar-se-ão menos onerosos do ponto de vista fiscal do que os nativos[11].

Efeitos nos trabalhadores nativos

Os economistas sublinham os efeitos positivos líquidos da imigração: a eficiência da vantagem comparativa e das trocas mutuamente benéficas. Os maiores vencedores da imigração são os próprios imigrantes, que aumentam o seu rendimento de forma considerável. Entre os nativos, todavia, existem ganhadores e perdedores e os efeitos agregados não capturam de forma adequada o bem comum do país anfitrião. O bem comum inclui o bem “de todos e de cada um”. Embora, na teoria, os vencedores devam ser capazes de compensar os perdedores (através da assistência no ajustamento, da requalificação ou de apoios ao rendimento), na prática as transferências podem não compensar as perdas.

Com o crescimento da percentagem de imigrantes qualificados (embora seja ainda pequena), mais estudos se têm centrado nos efeitos da imigração altamente qualificada nos mercados de trabalho e Blau e Mackie (2017, pp. 251-253) examinam estes resultados. Embora os resultados empíricos sejam mistos, há algumas evidências de que um influxo de imigrantes altamente qualificados aumenta os rendimentos em todos os níveis de educação dos nativos, talvez devido a efeitos de spillover e inovação[12]. Os imigrantes altamente qualificados parecem aumentar a taxa de produção de novas patentes e os imigrantes no geral apresentam taxas de trabalho independente mais elevadas que os nativos. E maiores taxas de trabalho independente e inovação tecnológica podem aumentar a produtividade económica, embora esta investigação esteja ainda numa fase inicial (Peri et al, 2015; Borjas, 2019; Burchardi et al, 2020).

O estudo das Academias Nacionais de 1997 (Smith e Edmonston, 1997) analisou a literatura sobre os efeitos da imigração nos mercados de trabalho pouco qualificados e encontrou efeitos negativos, mas relativamente pequenos. O estudo das Academias Nacionais de 2017 (Blau e Mackie, 2017, p. 267) sintetiza a explosão dominante da investigação empírica criativa sobre este tópico. Os novos estudos não alteraram a conclusão do estudo de 1997: a imigração tem, se tanto, efeitos negativos modestos nos salários dos trabalhadores não-qualificados: um crescimento 2 a 3% mais lento durante um período de dez anos.

Blau and Mackie (2017, cap. 5) discutem o desafio empírico de avaliar o efeito da imigração num mercado de trabalho dinâmico. Os imigrantes tendem a estabelecer-se em áreas onde as suas oportunidades económicas são maiores; isto (e o movimento dos trabalhadores nativos em resposta às alterações no mercado de trabalho) confunde a nossa capacidade de isolar o efeito de um influxo de imigrantes. Mais, é difícil identificar que nativos competem com quais  imigrantes. No curto-prazo, os imigrantes irão aumentar a oferta de mão-de-obra (e diminuir os salários) nos mercados onde são substitutos dos trabalhadores nativos (não-qualificados e adolescentes, na maioria dos casos) e irão aumentar a procura de mão-de-obra (e os salários) em mercados onde são complementares.

Qualquer que seja o efeito da imigração no curto-prazo, no longo-prazo o investimento de capital responde de forma a mitigar esses efeitos. Os investidores fornecerão mais capital e novas tecnologias para tirar partido do influxo; este novo investimento aumenta a procura por mão-de-obra não-qualificada, o que contraria a queda nos salários. Quando os imigrantes trazem o capital consigo, ou quando os investidores aumentam o capital antecipando um grande influxo de imigrantes, os efeitos negativos da imigração nos salários serão menores mesmo no curto-prazo.

Resumindo, no curto-prazo (durante um período de aproximadamente dez anos) um influxo de imigrantes não-qualificados terá provavelmente efeitos negativos modestos nos trabalhadores nativos, pouco qualificados e de baixos rendimentos. Esta redução nos salários beneficia os nativos que possuem capital. No longo-prazo, à medida que os níveis de capital aumentam para satisfazer a nova oferta de mão-de-obra, os efeitos negativos são menores: e mesmo os efeitos relativamente pequenos diminuem. Os beneficiários de longo-prazo são os próprios imigrantes e os detentores de capital[13].

Notas da parte 3

[8] Discurso de Gettysburg.

[9] Isto não significa que a imigração não tenha efeitos políticos. Giuliano e Tabellini (2020) apresentam evidências de que as grandes ondas de imigração do passado acabaram por deslocar os EUA para a esquerda no espetro político.

[10] Blau e Mackie (2017, pp. 461-462) enfatizam pressupostos cruciais sobre as perspetivas orçamentais de longo-prazo, a alocação de custos não recuperáveis ao “custo” de um imigrante e as caraterísticas socioeconómicas de novos imigrantes.

[11] Há um outro lado ainda mais complexo deste argumento que é importante. Os migrantes podem reduzir o encargo orçamental atual da população nativa porque a dívida é partilhada entre mais pessoas. A imigração abranda também o envelhecimento da população e os encargos fiscais que resultam desse processo.

[12] Alguns estudos encontram também efeitos negativos nos salários dos nativos altamente qualificados que competem mais diretamente com os imigrantes altamente qualificados, ver Borjas (2006).

[13] Os efeitos negativos nos salários podem também ser reduzidos (ou mesmo revertidos) pelo influxo de novas e complementares ideias empreendedoras que aumentam a procura de mão-de-obra, que reduzem o custo dos bens e serviços ou que aumentam a qualidade ou a variedade dos bens e serviços.

Nota sobre siglas usadas no artigo

Neste capítulo, as encíclicas papais, as exortações apostólicas e documentos similares serão referenciadas com o título completo na primeira referência e depois citadas apenas pelas suas iniciais. As mensagens do Dia Mundial do Migrante (World Day for Migrants) ou do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado (World Day for Migrants and Refugees) serão descritas pelas iniciais WDM e WDMR seguidas pela data.


domingo, 9 de março de 2025

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA (DSI), O DIREITO A MIGRAR E O BEM COMUM. 2.

 

Continuação do artigo de 08 de março.


O direito a migrar

Mais de 7,7 milhões de pessoas emigraram
 da Venezuela na última década
O direito a migrar na Doutrina Social da Igreja é estranhamente diferente de outros direitos. Não é um direito absoluto, como o direito à vida. Nem nós próprios nos podemos negar o direito à vida. O direito a migrar assemelha-se mais ao direito de contrair matrimónio, que não impõe uma obrigação de casar. Temos o direito a migrar, mesmo que não o exerçamos. Ainda assim, o direito a migrar é diferente do direito a casar num aspeto importante: a Doutrina Social da Igreja expressa um certo lamento quando alguém exerce o seu direito a migrar; e não existe lamento semelhante quando os casais se casam.

A ambiguidade tem origem na relação do migrante com dois bens comuns. Um imigrante internacional toca o chão de duas nações, cada uma com um bem comum. A Gaudium et spes define o bem comum como sendo “o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (26). O bem comum é a justificação e a finalidade comum do estado. É uma ferramenta necessária para o florescimento humano. As suas condições incluem o respeito pelos direitos da pessoa, da família, das comunidades religiosas e da sociedade civil.

As “condições sociais” do bem comum são produzidas de forma cooperativa pelos membros de um estado. Cada um deve participar no benefício e o projeto comum produz um certo companheirismo entre cidadãos. A partilha de um bem comum suscita um sentimento de sermos “devedores” da nossa comunidade e faz nascer um sentimento de solidariedade, “um compromisso firme e duradouro para com o bem comum” (Pontifício Conselho para a Justiça e Paz, 2004[4], 195). Devemos alguma coisa aos países nos quais vivemos e aos nossos concidadãos. Uma comunidade que persegue o seu próprio bem comum identifica-se como uma comunidade, como um “nós”. A nossa contribuição para o bem comum é crucial para o nosso florescimento.

Um imigrante encontra-se entre duas comunidades nacionais, cada uma com um bem comum. Ele deixa para trás uma noção para cujo bem comum deve contribuir (a menos que esteja a oprimir a sua dignidade) e entra num país cujo bem comum não partilha da mesma forma que os cidadãos e residentes do país de acolhimento.

A primeira fonte de ambivalência sobre o direito a migrar é o bem comum do país de origem. A Gaudium et spes afirma o direito a migrar, mas a afirmação é um aparte da discussão sobre o “direito e dever” de todos os cidadãos dos países em desenvolvimento para contribuir para o bem comum do seu país.

ser direito e dever seu (…) contribuir, na medida das próprias possibilidades, para o verdadeiro desenvolvimento da sua comunidade. Sobretudo nas regiões economicamente menos desenvolvidas (…) fazem correr grave risco ao bem comum todos aqueles que conservam improdutivas as suas riquezas ou, salvo o direito pessoal de emigração, privam a própria comunidade dos meios materiais ou espirituais de que necessita. (65)

Todos os cidadãos devem empregar os seus recursos para o bem comum dos seus países e os próprios países devem respeitar e salvaguardar este direito e dever. No entanto esta expetativa não permite restrições ao “direito pessoal de migração”[5].

O contexto do direito a migrar vem por defeito com a expetativa de que as pessoas irão participar e contribuir para o bem comum da sua terra natal. Quando os migrantes exercem o seu direito de partir, é frequentemente porque não são capazes de participar no bem comum ali. O direito a migrar existe quando existem “razões justas” para partir (PT, 25), quando os cidadãos são explorados ou impedidos por outra forma de contribuir “de acordo com as suas possibilidades” (GS, 65).

É evidente que existe alguma ambivalência sobre o direito a migrar: merece respeito e proteção urgente, mas o seu exercício generalizado é um sintoma de que alguma coisa correu mal no país de origem ou no sistema internacional[6]. João Paulo II nota que a migração é uma perda para o país de origem, cujos filhos e filhas nativos contribuem antes para o bem comum de algum outro país (LE, 23). O Papa Francisco lamenta o “desenraizamento cultural e religioso” dos emigrantes, bem como a “fragmentação (…) sentida pelas comunidades que deixam para trás” (FT, 38). Num mundo ideal, menos pessoas exerceriam o direito a migrar (FT, 129).

 

Três argumentos a favor do direito a migrar

A maior crise migratória da Venezuela
Yuengert (2004) apresenta três argumentos da Doutrina Social da Igreja que, juntos, apoiam o direito a migrar e enfatizam também a relação do migrante com o bem comum da sua terra natal. O primeiro é “o direito de uma família ao sustento” (p. 12), que está intimamente ligado com o destino universal dos bens e o direito à propriedade privada (MM, 45; PP, 69). Para florescer e se desenvolver, as famílias precisam de ter acesso a trabalho produtivo e aos bens deste mundo. A capacidade de atravessar fronteiras nacionais é uma garantia acrescida deste acesso.

O segundo argumento é “a prioridade da família sobre o estado” (Yuengert 2004, pp. 12-13). Esta prioridade é claramente estabelecida pela defesa da propriedade privada feita por Leão XIII (Rerum novarum, 13). Este princípio não proíbe quaisquer restrições à família em nome do bem comum. Pelo contrário, insiste que o estado e as suas leis existem em nome da família. Um objetivo do estado que exija o sacrifício das famílias e de outras sociedades de base não promove verdadeiramente o bem comum.

O segundo argumento destaca a natureza ambivalente do direito a migrar. Os potenciais imigrantes têm origem em comunidades e nações com bens comuns. Seria bom e justo que procurassem o seu florescimento nos seus próprios países e que a sua terra natal respeitasse e promovesse o seu florescimento como parte do bem comum. No entanto, muitas nações falham em providenciar as condições nas quais as famílias possam prosperar e as pessoas possam contribuir para o bem comum “de acordo com as suas possibilidades” (GS, 65). Os Papas atribuem a culpa desta situação a uma combinação de desequilíbrios e desigualdades no sistema internacional como um todo, com a má gestão e opressão nos países de origem. Em qualquer caso, o direito a migrar é uma salvaguarda que permite que os cidadãos “procurem melhores condições de vida noutro país” (LE, 23)[7].

O terceiro argumento a favor do direito a migrar, “o direito à iniciativa económica”, associa explicitamente a migração à atividade económica, ou à sua ausência no país de origem. João Paulo II descreve claramente o que está em causa na “iniciativa económica” da seguinte forma:

(…) trata-se de um direito importante, não só para os indivíduos singularmente, mas de igual modo para o bem comum. (…) a negação deste direito ou a sua limitação, em nome de uma pretensa «igualdade» de todos na sociedade, é algo que reduz, se é que não chega mesmo a destruir de facto, o espírito de iniciativa, isto é, a subjetividade criadora do cidadão. (…) Ora isto gera um sentimento de frustração ou desespero e predispõe para o desinteresse pela vida nacional, impelindo muitas pessoas para a emigração (…) (SRS, 15).

Esta passagem recorda-nos que um conceito abstrato como a “subjetividade criadora” está intimamente relacionado com o trabalho e com a atividade económica. Há uma relação próxima entre o direito a migrar e o direito à iniciativa económica. Embora os Papas deem especial atenção aos migrantes não-económicos que fogem à violência e à opressão, dois dos três argumentos acima enumerados enfatizam a provisão material e a expressão da ação humana através da atividade económica.

Os seres humanos são tanto materiais como espirituais: o exercício do arbítrio pessoal tem igualmente consequências espirituais e materiais. A supressão da iniciativa econômica tem, da mesma forma, consequências espirituais e materiais. A pobreza econômica da qual fogem os migrantes é frequentemente uma expressão de uma negação mais ampla da dignidade do migrante.

Notas do artigo:

[4] Este é o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, doravante designado por “Compêndio”.

[5] João Paulo II enumera os direitos universais em causa na migração, cada um estritamente ligado ao lugar e à comunidade. Por exemplo, “(…) o direito de ter o próprio país, de viver livremente no seu próprio país, de viver juntamente com a sua família (…) de preservar e desenvolver a sua própria herança étnica, cultural e linguística” (WDM, 2001, 3).

[6] João Paulo II associa o direito a migrar ao “direito a não emigrar” (WDMR, 2004, 3).

[7] Ver também WDMR, 2004 3, WDMR, 2014, WDMR, 2015.

Continua na próxima postagem