sábado, 18 de julho de 2009


O MONGE E O PÁSSARO


Michel Zink




Era uma vez um monge. Segundo o costume daqueles tempos, seus pais tinham-no consagrado a Deus desde a nascença e enviado ao mosteiro quando ainda era criança. Agora, encontrava-se no limiar da velhice. Não se arrependia de ter passado a vida toda no mesmo convento, entre o coro e o dormitório, entre a sala do capítulo e o refeitório, entre o acolhimento aos peregrinos na hospedaria e a cópia de manuscritos no scriptorium. Tinha sido um monge feliz, o que quer dizer um bom monge. A sua fé era confiante, a sua consciência pura. Esperava em paz que Deus, a quem servira neste mundo, o acolhesse no outro.

Uma única inquietude o atormentava. Um monge leva uma vida regular, isto é, uma vida submetida a regras e uma vida em que cada dia, compassado pelas horas do ofício divino da manhã até a noite, de matinas a completas, é idêntico àquele que o precedeu e àquele que o seguirá. Idêntico? Bem, não propriamente. O ano litúrgico flui, alternando os tempos de penitência com os tempos de alegria: ao tempo do Advento sucede o tempo de Natal, ao tempo da Quaresma o tempo Pascal. Assim a liturgia desenrola a imagem da vida de Cristo e modela a vida do cristão. Mas o ano termina, e outro ano igual começa.

Essa regularidade, essa monotonia, esse retorno dos dias e dos anos não pesavam ao nosso monge, pois nunca conhecera nada diferente. Sabia, sobretudo, que esta vida tem um final, e vivia na espera da outra, da verdadeira. E aí estava a inquietação que o roía. Os eleitos, no Paraíso, cantam os louvores de Deus, como o fazem os monges neste mundo, mas nada mais têm a esperar; fazem-no por toda a eternidade. E o nosso monge temia que a eternidade acabasse por pesar-lhe: por mais feliz que se possa ser no seio de Deus, tinha medo de aborrecer-se ali.

Certa manhã, na hora do recreio que se segue à reunião do capítulo, foi, conforme o seu hábito, passear um pouco na floresta que confinava com o mosteiro. Era o tempo Pascal, que coincide com a primavera: o ar era vivo e leve, odorífero sem estar carregado de nenhum perfume em particular. As folhas tenras das árvores, a erva, o musgo, tudo estava fresco, claro e alegre. O monge sentou-se ao pé de um freixo cujas pequenas folhas alongadas traçavam sobre a terra o rendilhado de uma sombra ligeira. Minúsculas violetas escondiam-se entre as ervas. Um pouco adiante, onde plantas mais altas e mais escuras assinalavam uma depressão úmida, talvez uma fonte, havia anêmonas e, mais além, narcisos.

O monge encostou-se ao tronco da árvore e pensou mais uma vez na questão que o preocupava. Sabia muito bem que não tinha razão em levantá-la. Tinha escrúpulos e censurava-se por fazê-lo. Mesmo assim, porém, teria agradecido muito a Deus que o tranqüilizasse, dando-lhe ao menos um indício do que o esperava no paraíso.

Como permanecia ali perfeitamente imóvel, um pássaro que se tinha calado à sua aproximação, voltou a cantar. O seu canto era tão puro, tão modulado, tão melodioso, que o monge esqueceu as suas cavilações para escutá-lo. Pareceu-lhe nunca ter ouvido nada tão belo. Todas as melodias do oficio divino e das horas monásticas, as antífonas e os responsórios, os tropos e as seqüências, os hinos e os salmos que cantava no coro com os seus irmãos; todas essas melodias que, cada uma à sua maneira, subiam da nota base à terceira ou à quinta, desdobravam os seus melismas em torno da dominante, e de¬pois desciam suavemente até a inicial, como se seguissem as arcadas da abóbada da igreja ou do claustro; todas essas me¬lodias que para ele encarnavam a beleza e a paz – todas elas pareceram-lhe de repente insípidas em comparação com as poucas notas que formavam o canto daquele pássaro.


Ao cabo de um instante, pensou que era hora de voltar ao mosteiro, se não queria atrasar-se para o oficio de terça. Levantou-se, e o pássaro calou-se. Mal chegou à entrada do mosteiro, qual não foi a sua surpresa quando viu que o irmão porteiro, que ele cumprimentara uns instantes antes ao sair, tinha sido substituído por outro monge, e um monge que ele não conhecia! Esse novo porteiro também não o conhecia, pois olhou-o surpreso, perguntando-lhe o que desejava. Confundido, um pouco irritado, o nosso monge respondeu-lhe que só queria entrar, e entrar depressa para não chegar tarde ao oficio divino. O outro olhava-o sem parecer compreendê-lo.

– Mas – acabou por dizer –, não sois desta abadia.

– Como assim? Como não sou desta abadia! Sou... E disse o seu nome.

A surpresa do porteiro transformou-se em suspeita.

– Não há ninguém aqui com esse nome.

O monge começou a pensar que a brincadeira se estava alongando demais. Levantou a voz e exigiu que se chamasse o abade. O outro acabou por ceder. Mas, quando o abade chegou, o monge também não o reconheceu: não era o seu abade! Começou a ter medo. Balbuciando um pouco, repetiu que tinha saído apenas para um breve passeio, que talvez se tivesse atrasado por uns instantes para escutar um pássaro, mas que se apressara a voltar para não se atrasar para o oficio – como se tais explicações pudessem esclarecer aquela situação incompreensível. O abade desconhecido olhava-o e escutava-o em silêncio.

– Há cem anos – disse por fim –, havia nesta abadia um monge que tinha o vosso nome. Certo dia, mais ou menos a esta hora e nesta estação, saiu do mosteiro. Nunca mais regressou e nunca ninguém tornou a vê-lo.

Então o monge compreendeu que Deus o escutara. Se cem anos lhe tinham parecido um instante no arroubamento em que o mergulhara o canto do pássaro, a eternidade não seria senão um instante no arroubamento em Deus. Confessou ao abade a inquietação que experimentara durante tanto tempo, e, sentindo cair sobre si o peso de toda aquela centúria, morreu em paz entre os seus braços.


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(*) Adaptado do sermão 18, para o terceiro domingo depois da Páscoa, das Homilias de Maurice de Sully.

Nascido por volta de 1120, numa família modesta de Sully-sur-Loire, Maurice tornou-se em 1160 bispo de Paris, onde empreendeu a construção da catedral de Notre-Dame. Excelente administrador da sua diocese, compôs um compêndio de sermões ou homilias que foi usado durante séculos como ajuda para a pregação. Há uma versão latina e uma francesa desse sermonário. Usamos Maurice de Sully and the Medieval Vernacular Homily. With the Text of Maurice´s French Homilias from a Sens Cathedral Chapter Ms., ed. C.A. Robson, Oxford, Basil Blackwell, 1952, págs. 124-127.

Conto medieval, selecionado e reescrito por Michel Zink, que oferece ao leitor moderno uma pequena demonstração da fé viva, generosa e fervente praticada na vida de cada dia do homem da Idade Média.


Michel Zink
Nascido em 1945, é Doutor em Letras. Foi professor da Universidade de Toulouse e da Sorbonne, e atualmente leciona Literatura Francesa Medieval no Collège de France. Foi também professor visitante das Universidades de Berkeley, Constança, John Hopkins, Nápoles, Penn, Roma, Santiago de Compostela e Yale.


Fonte: O Jogral de Nossa Senhora. Quadrante, São Paulo: 2001. Págs. 68-71.
Tradução: Quadrante




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