segunda-feira, 27 de julho de 2009



DEUS TRABALHA EM SUA EMPRESA?

Floriano Serra





Que padrão de relacionamento, que critérios de decisão e de promoção, que nível de motivação, que qualidade de vida pode-seesperar de uma cultura organizacional na qual não se cultiva a bondade, a solidariedade, a fraternidade, o respeito e o amor ao próximo, sentimentos básicos da espiritualidade?

Em muitas empresas, existem indivíduos que não acreditam em Deus ou porque são ateus ou porque trabalham tanto pra ficarem ricos que não têm tempo de pensar nessas coisas... E eles mal imaginam que devem a esse Deus ignorado o privilégio do livre arbítrio – ou seja, o direito que lhes dá até a opção de descrer d’Ele.

Começo a achar que esses indivíduos tendem a se tornar exceção em muito pouco tempo. A cada dia que passa, ouço e leio entrevistas de grandes empresários de sucesso, famosos cientistas, artistas, governantes, líderes políticos, esportistas vencedores e trabalhadores simples atestando a crença n’Ele.

Para ficarmos apenas no campo corporativo, percebo que, atualmente, muitas organizações começam seu dia de trabalho reunindo seus empregados para, juntos, fazerem alguma forma de oração, pedindo sabedoria e justiça nas decisões e harmonia nas relações.

Por essas considerações, fico feliz quando tomo conhecimento de depoimentos importantes, como o do biólogo americano Francis Collins, um dos cientistas mais notáveis da atualidade. Diretor do Projeto Genoma, Collins foi um dos responsáveis pelo mapeamento do DNA humano, em 2001 e não esconde de ninguém que, apesar do seu comprometimento com a ciência, não abre mão da fé religiosa, razão pela qual é muito criticado no meio cientifico.

Para reagir à ironia dos seus colegas cientistas, Collins lançou recentemente nos Estados Unidos o livro “The Language of God” (A Linguagem de Deus), no qual, em 300 páginas, narra como aos 27 anos deixou de ser ateu e como, ao converter-se ao cristianismo, passou a enfrentar sérias dificuldades no seio da comunidade acadêmica.

No seu livro e nas entrevistas, Collins defende aquilo que cada vez mais se torna óbvio: ciência e religião não são incompatíveis, mas sim complementares. Segundo ele, a ciência deve permanecer em silêncio nos assuntos espirituais porque estes transcendem a ela. Ele lança um questionamento: “Passo à beira de um rio, vejo uma pessoa se afogando e decido ajudá-la, mesmo pondo em risco minha própria vida. De onde vem esse impulso, nunca explicado pela teoria da evolução?”.

Lembro que em S.Paulo, há poucas semanas, um rapaz se jogou no rio Tietê para salvar uma criança que ele nem conhecia. Também recentemente, em Nova York, outro homem se jogou nos trilhos do metrô para salvar um outro, que também não conhecia. De onde vem esse impulso de incrível compaixão e solidariedade senão da parte divina do ser humano, originada na crença num Deus de bondade?

Em algumas empresas, em nome de paradigmas e valores no meu entender equivocados e até ultrapassados, cria-se uma barreira às condutas e manifestações espirituais, transformando o ambiente de trabalho numa atividade exclusivamente física, como se os profissionais fossem constituídos apenas de matéria física. Nessas empresas, é tabu falar-se em Deus.

Posso estar enganado, mas essa postura insensível certamente se reflete no modelo de gestão ali adotado pelos dirigentes e certamente recomendado aos líderes. Uma pena... Que padrão de relacionamento, que critérios de decisão e de promoção, que nível de motivação, que qualidade de vida pode-se esperar de uma cultura organizacional na qual não se cultiva a bondade, a solidariedade, a fraternidade, o respeito e o amor ao próximo, sentimentos básicos da espiritualidade?

Jamais podemos esquecer que, em qualquer empresa, o mesmo poder que pode demitir é o mesmo que pode promover. O mesmo poder que pode realizar sonhos é o mesmo que pode provocar pesadelos. O mesmo que pode criar alegria e união na equipe é o mesmo que pode gerar medo, tristeza e inimizades.

Certamente, a escolha de como usar o poder que lhe é concedido, é do Líder, conforme a Visão, a Missão e os Valores da empresa a que serve. Basta usar o mesmo livre arbítrio já citado. Mas, atenção: a inspiração para essa escolha, se não estiver embasada e iluminada pela crença em Deus, certamente correrá o risco de apontar para o caminho da tirania, do egoísmo e da insensibilidade.

Por essas e outras, até mesmo pela sobrevivência da organização, convém que Deus trabalhe na sua empresa – como, graças a Deus (desculpem o trocadilho...), trabalha na minha.

Com certeza Ele nunca será visto nem tocado pelos “colegas”. Não importa. Importante é que os “colegas” sejam tocados por Ele, em cada passo das suas atividades diárias.


Floriano Serra é psicólogo clínico e organizacional, consultor, palestrante e presidente da SOMMA4 Consultoria em Gestão de Pessoas e do IPAT - Instituto Paulista de Análise Transacional. Foi diretor de Recursos Humanos em empresas nacionais e multinacionais, recebendo vários prêmios pela excelência em Gestão de Pessoas. É autor de uma dezena de livros, como "A Empresa Sorriso" e "A Terceira Inteligência", e mais de 200 artigos sobre o comportamento humano - pessoal e profissional, publicados em websites, jornais e revistas, inclusive no Exterior.

E-mail: florianoserra@somma4.com.br
florianoserra@terra.com.br

Publicado no Portal da Família em 17/02/2008

sábado, 18 de julho de 2009


O MONGE E O PÁSSARO


Michel Zink




Era uma vez um monge. Segundo o costume daqueles tempos, seus pais tinham-no consagrado a Deus desde a nascença e enviado ao mosteiro quando ainda era criança. Agora, encontrava-se no limiar da velhice. Não se arrependia de ter passado a vida toda no mesmo convento, entre o coro e o dormitório, entre a sala do capítulo e o refeitório, entre o acolhimento aos peregrinos na hospedaria e a cópia de manuscritos no scriptorium. Tinha sido um monge feliz, o que quer dizer um bom monge. A sua fé era confiante, a sua consciência pura. Esperava em paz que Deus, a quem servira neste mundo, o acolhesse no outro.

Uma única inquietude o atormentava. Um monge leva uma vida regular, isto é, uma vida submetida a regras e uma vida em que cada dia, compassado pelas horas do ofício divino da manhã até a noite, de matinas a completas, é idêntico àquele que o precedeu e àquele que o seguirá. Idêntico? Bem, não propriamente. O ano litúrgico flui, alternando os tempos de penitência com os tempos de alegria: ao tempo do Advento sucede o tempo de Natal, ao tempo da Quaresma o tempo Pascal. Assim a liturgia desenrola a imagem da vida de Cristo e modela a vida do cristão. Mas o ano termina, e outro ano igual começa.

Essa regularidade, essa monotonia, esse retorno dos dias e dos anos não pesavam ao nosso monge, pois nunca conhecera nada diferente. Sabia, sobretudo, que esta vida tem um final, e vivia na espera da outra, da verdadeira. E aí estava a inquietação que o roía. Os eleitos, no Paraíso, cantam os louvores de Deus, como o fazem os monges neste mundo, mas nada mais têm a esperar; fazem-no por toda a eternidade. E o nosso monge temia que a eternidade acabasse por pesar-lhe: por mais feliz que se possa ser no seio de Deus, tinha medo de aborrecer-se ali.

Certa manhã, na hora do recreio que se segue à reunião do capítulo, foi, conforme o seu hábito, passear um pouco na floresta que confinava com o mosteiro. Era o tempo Pascal, que coincide com a primavera: o ar era vivo e leve, odorífero sem estar carregado de nenhum perfume em particular. As folhas tenras das árvores, a erva, o musgo, tudo estava fresco, claro e alegre. O monge sentou-se ao pé de um freixo cujas pequenas folhas alongadas traçavam sobre a terra o rendilhado de uma sombra ligeira. Minúsculas violetas escondiam-se entre as ervas. Um pouco adiante, onde plantas mais altas e mais escuras assinalavam uma depressão úmida, talvez uma fonte, havia anêmonas e, mais além, narcisos.

O monge encostou-se ao tronco da árvore e pensou mais uma vez na questão que o preocupava. Sabia muito bem que não tinha razão em levantá-la. Tinha escrúpulos e censurava-se por fazê-lo. Mesmo assim, porém, teria agradecido muito a Deus que o tranqüilizasse, dando-lhe ao menos um indício do que o esperava no paraíso.

Como permanecia ali perfeitamente imóvel, um pássaro que se tinha calado à sua aproximação, voltou a cantar. O seu canto era tão puro, tão modulado, tão melodioso, que o monge esqueceu as suas cavilações para escutá-lo. Pareceu-lhe nunca ter ouvido nada tão belo. Todas as melodias do oficio divino e das horas monásticas, as antífonas e os responsórios, os tropos e as seqüências, os hinos e os salmos que cantava no coro com os seus irmãos; todas essas melodias que, cada uma à sua maneira, subiam da nota base à terceira ou à quinta, desdobravam os seus melismas em torno da dominante, e de¬pois desciam suavemente até a inicial, como se seguissem as arcadas da abóbada da igreja ou do claustro; todas essas me¬lodias que para ele encarnavam a beleza e a paz – todas elas pareceram-lhe de repente insípidas em comparação com as poucas notas que formavam o canto daquele pássaro.


Ao cabo de um instante, pensou que era hora de voltar ao mosteiro, se não queria atrasar-se para o oficio de terça. Levantou-se, e o pássaro calou-se. Mal chegou à entrada do mosteiro, qual não foi a sua surpresa quando viu que o irmão porteiro, que ele cumprimentara uns instantes antes ao sair, tinha sido substituído por outro monge, e um monge que ele não conhecia! Esse novo porteiro também não o conhecia, pois olhou-o surpreso, perguntando-lhe o que desejava. Confundido, um pouco irritado, o nosso monge respondeu-lhe que só queria entrar, e entrar depressa para não chegar tarde ao oficio divino. O outro olhava-o sem parecer compreendê-lo.

– Mas – acabou por dizer –, não sois desta abadia.

– Como assim? Como não sou desta abadia! Sou... E disse o seu nome.

A surpresa do porteiro transformou-se em suspeita.

– Não há ninguém aqui com esse nome.

O monge começou a pensar que a brincadeira se estava alongando demais. Levantou a voz e exigiu que se chamasse o abade. O outro acabou por ceder. Mas, quando o abade chegou, o monge também não o reconheceu: não era o seu abade! Começou a ter medo. Balbuciando um pouco, repetiu que tinha saído apenas para um breve passeio, que talvez se tivesse atrasado por uns instantes para escutar um pássaro, mas que se apressara a voltar para não se atrasar para o oficio – como se tais explicações pudessem esclarecer aquela situação incompreensível. O abade desconhecido olhava-o e escutava-o em silêncio.

– Há cem anos – disse por fim –, havia nesta abadia um monge que tinha o vosso nome. Certo dia, mais ou menos a esta hora e nesta estação, saiu do mosteiro. Nunca mais regressou e nunca ninguém tornou a vê-lo.

Então o monge compreendeu que Deus o escutara. Se cem anos lhe tinham parecido um instante no arroubamento em que o mergulhara o canto do pássaro, a eternidade não seria senão um instante no arroubamento em Deus. Confessou ao abade a inquietação que experimentara durante tanto tempo, e, sentindo cair sobre si o peso de toda aquela centúria, morreu em paz entre os seus braços.


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(*) Adaptado do sermão 18, para o terceiro domingo depois da Páscoa, das Homilias de Maurice de Sully.

Nascido por volta de 1120, numa família modesta de Sully-sur-Loire, Maurice tornou-se em 1160 bispo de Paris, onde empreendeu a construção da catedral de Notre-Dame. Excelente administrador da sua diocese, compôs um compêndio de sermões ou homilias que foi usado durante séculos como ajuda para a pregação. Há uma versão latina e uma francesa desse sermonário. Usamos Maurice de Sully and the Medieval Vernacular Homily. With the Text of Maurice´s French Homilias from a Sens Cathedral Chapter Ms., ed. C.A. Robson, Oxford, Basil Blackwell, 1952, págs. 124-127.

Conto medieval, selecionado e reescrito por Michel Zink, que oferece ao leitor moderno uma pequena demonstração da fé viva, generosa e fervente praticada na vida de cada dia do homem da Idade Média.


Michel Zink
Nascido em 1945, é Doutor em Letras. Foi professor da Universidade de Toulouse e da Sorbonne, e atualmente leciona Literatura Francesa Medieval no Collège de France. Foi também professor visitante das Universidades de Berkeley, Constança, John Hopkins, Nápoles, Penn, Roma, Santiago de Compostela e Yale.


Fonte: O Jogral de Nossa Senhora. Quadrante, São Paulo: 2001. Págs. 68-71.
Tradução: Quadrante